Amy e Isabelle. Maternidade náufraga

Amy e Isabelle. Filha e mãe. Um verão terrível. Uma relação vulnerável, tóxica, sem saída, de onde nenhuma das duas poderá escapar.

Amy e Isabelle (1998), o primeiro romance de Elizabeth Strout, só em maio chegou às livrarias portuguesas, editado pela Alfaguara e com tradução de Eugénia Antunes. Amy é uma adolescente incompreendida e insegura. Não consegue ter uma comunicação aberta com a mãe. Sente-se a todo o momento desconfortável e estranha. “Irritava-a a maneira como a cara da mãe se inclinava na extremidade do pescoço comprido, como uma espécie de cobra. E detestava o cheiro a pó talco.” Irritava-a a maneira como a mãe se vestia, os muros que lhe impunha a todo o momento, a maneira como se fechava em concha sobre si mesma.

Isabelle Goodrow, por sua vez, é uma mulher que toda a vida escondeu da comunidade de Shirley Falls o seu maior segredo. Ter engravidado aos 17 anos de Jake Cunningham, o melhor amigo do pai, casado e com três filhos na altura.

O sonho de Isabelle era ter sido professora, mas com a morte da mãe viu-se obrigada a tratar de Amy sozinha e a começar a trabalhar. O seu trabalho é há anos o mesmo. Cinzento e desinteressante. Isabelle é a secretária de Avery Clark, um homem também cinzento e desinteressante, diretor da pequena fábrica onde só trabalham mulheres. É por ele que Isabelle alimenta secretamente há demasiado tempo uma paixão assolapada. Ou talvez não seja bem por ele, mas pela ideia do que seria ter uma relação estável com um homem dotado de um certo poder e estatuto.

Tudo no trabalho lhe parece desajustado. A começar pelas colegas; pelas suas conversas estéreis e fúteis; pelo modo vulgar como se vestem, como se comportam e como comem. Pelo modo gratuito como julgam e opinam sobre os mais variados assuntos.

Isabelle vive com a filha isolada do resto da vila, mas também no ambiente de trabalho ela vive numa espécie de autoexílio. A sua mesa é afastada das restantes, não faz amizades com ninguém, e tenta abster-se o máximo possível em todos os assuntos.

Amy, tal como a mãe até certa altura, tinha o sonho de ser professora. Até ter conhecido o homem que iria virar o seu mundo ao contrário. Robertson é o seu novo professor substituto de matemática. Desde o primeiro dia revela ter uma mentalidade e uma perspetiva diferente. É um fura sistema. Um contra corrente. Um homem que soube ser íman e mel para Amy. Que se interessava de um modo especial pelos alunos. Que os confrontava, lhes perguntava quem seriam dentro de uma década. Amy apaixonou-se perdidamente por ele, e numa certa tarde em pleno verão é apanhada em flagrante dentro do carro do professor pelo chefe da mãe. Quando Isabelle fica a par do escândalo sofre um choque.

Sem dúvida que um dos momentos mais marcantes desta história é quando Isabelle, tomada por uma raiva fulminante corta às tesouradas o cabelo à filha. “O som metálico da tesoura a cortar uma e outra vez (recordaria nitidamente aquele som, ouvi-lo-ia em sonhos, durante anos), um brilho argênteo no espelho quando as lâminas refletiram por um segundo o último raio de sol, e depois a estranha sensação de que estava desequilibrada, de que a sua cabeça pesava menos. – Apanha isto. – a mãe recuou, ofegante. E guinchou, de repente: – Apanha esta porcaria! Soluçando, Amy desceu aos tropeções as escadas e tirou um dos sacos de papel do supermercado que estavam dobrados sob o lava-louça. Regressou ao quarto (trepando as escadas de gatas, como um animal inebriado, arrastando o saco de papel, que raspava ao de leve na parede), e começou a enchê-lo de cabelo, e ao fazê-lo começou a gritar, porque apanhar as compridas madeixas encaracoladas de cabelo era como agarrar numa perna amputada com o sapato ainda calçado – aquilo já não era ela (gritou ainda com mais força) –, o que era ela ainda?”.

Isabelle nunca pensou ter uma filha que a envergonhasse. Sonhava que a filha entrasse numa boa universidade, embora tremesse com a ideia de Amy um dia dizer que tinha uma mãe a trabalhar numa fábrica. Por conta destes pensamentos, começa a fazer uma coisa que nunca tinha feito antes. A ler. Yeats, Shakespeare, Flaubert. Agradava-lhe a ideia de ser uma pessoa mais instruída, e ter mais possíveis e futuros tópicos de conversa com Amy.

Quando Isabelle tem a ideia de começar a ler nas pausas do trabalho e leva consigo Madame Bovary, começa a ser gozada pelas colegas, que a passam a apelidá-la de Madame Bovário. Mas o ter começado a ler não foi o suficiente para aproximar mãe e filha. Não foi o suficiente porque ambas, tal como todos os personagens de Strout escondem segredos atrás de segredos.

A imagem de um cão desesperado a correr desenfreado em círculo atrás da própria cauda serve na perfeição para ilustrar o fenómeno de circularidade não só neste livro, mas como em toda a obra da escritora. O Maine serve de cenário para a maioria dos seus romances. O submundo labiríntico dos segredos e das mentiras, bem como a quotidianidade da vida e a reciclagem constante das relações e do passado estão na base de toda a sua arquitetura narrativa. Os personagens são na maioria mulheres, infelizes, ansiosas ou temperamentais, ou com mau génio. São mulheres que se sentem extremamente sós e que no geral não se libertam do vício de esperar uma tragédia a todo o momento. São mulheres que não sentem nunca bem consigo próprias.

Comecemos pela circularidade no que refere às contradições. Mãe e filha nutrem uma pela outra sentimentos muito recalcados, e ao mesmo tempo emoções que inexplicavelmente chocam com extrema a violência. Há algo em Amy que a faz afastar-se de Isabelle, mas ao mesmo tempo não a deixa ser capaz de viver sem ela. Da mesma maneira que há algo em Isabelle que a faz sentir uma repulsa acintosa quando descobre que a filha já não é virgem. E essa repulsa não tem a ver com a quebra de confiança, ou com a diferença abissal de idades entre Amy e o professor. Tem unicamente a ver com ciúmes. Isabelle também queria voltar a sentir prazer novamente. Queria-se sentir de novo viva nos braços de um homem. Isabelle ficou furiosa e envergonhada quando ouviu o professor atirar-lhe à cara que a filha tinha um talento natural para o sexo, não porque se tivesse sentido despeitada, mas sim porque isso lhe despertava uma inveja desmedida.

A circularidade na busca pelo sentido constante da vida, na apreciação agridoce da intimidade doméstica saburrenta, da quotidianidade perniciosa e traiçoeira, são sem dúvida o sal na ferida de todas as narrativas de Strout. Todos os seus livros têm estas características em comum. Têm um tédio que nunca se acobarda, uma angústia que insiste em não dar tréguas ao leitor. Lembram-nos que a mesma gaze emporcalhada que cobre todas as relações humanas, as nossas casas, o nosso bairro, o nosso passado, o nosso olhar sobre os lugares onde trabalhamos e vivemos, se pode reciclar. Se vai reciclando com o tempo. Mas lembram-nos também, que à medida que vamos tentando descolar da pele essa gaze, há uma crosta que se deixa sem defesas arrastar com ela. É essa a crosta que se deixa arrastar, que interessa a Strout. A crosta que esconde cada contradição. Cada raiva inexplicável. Cada desgosto. Cada esperança descorada. Cada falhanço. Cada julgamento. Cada comparação. Cada arrependimento. Cada mentira.

A todo o momento Isabelle julga-se a si própria. Pondera se foi ou não uma boa mãe. Se passou os seus genes a Amy. Não queria ter sido tão reprovadora, nem a ter prejudicado nunca. E quem será Amy no futuro? É essa a pergunta que faz eco dentro desta mãe.

É difícil darmo-nos conta que muitas vezes no puzzle das nossas vidas, nem todas as peças encaixam na perfeição. Que falhámos a tentar encaixá-las. Que há peças misteriosas, únicas e frágeis demais para as manusearmos. Irrepetíveis. Que num minuto o puzzle até pode parecer montado, mas no seguinte pode aparecer desmanchado aos nossos pés.

“As pessoas são estranhas. As pessoas guardam todo o tipo de segredos que nem nos passam pela cabeça.” Guardam mesmo. E, sem dúvida que o telhado doméstico é o mais difícil de destapar, se bem que Strout a cada livro, continua a levantar telha a telha desse telhado com genialidade e compaixão por todos os seus personagens.