Um dos volumes, de capa castanha, encontrava-se em péssimo estado: um canto da capa descolorado, desgastes e arranhões vários, algumas páginas manchadas. Apresentava sinais claros de negligência ou mesmo de maus tratos. O outro volume, de capa amarela, estava perfeitamente aceitável. Nada a apontar.
Juntos formam o díptico da História da República Romana, de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, na edição da Parceria A. M. Pereira. Curiosamente, o volume I, de capa amarela, é o mais recente – finais da década de 1920; o volume II, de capa castanha, é o mais antigo – 1897. Não devia ser ao contrário? Adquiri-os por um bom preço, juntamente com alguns outros livros. Talvez mais tarde conseguisse desvendar o mistério.
Chegado a casa, pus-me a tentar decifrar a assinatura de posse, escrita há muitos anos com caneta de tinta permanente. O primeiro nome era claramente ‘Alberto’. O segundo pareceu-me ‘Osório’. E por fim, pareceu-me ‘de Castro’.
Quem foi Alberto Osório de Castro? Socorro-me de uma página de jornal (o Boletim Aléo, de janeiro de 1946) que encontrei dobrada em quatro no interior de um outro livro adquirido na mesma ocasião que a História da República Romana. O artigo, um elogio fúnebre assinado por Hipólito Raposo, tem por título ‘O poeta das saudosas distâncias’. Passo a citar: «Magistrado, etnógrafo, botânico, estudioso de insaciável curiosidade, fiel leitor de Camões e dos grandes cronistas da Índia e do Oriente, era aliciante a sua conversação e nenhuma remembrança histórica mais certa e comovida do que a deste Poeta-Fidalgo».
Nascido em Coimbra em 1868, Osório de Castro estudou Leis em Coimbra e exerceu o cargo de juiz em diversas colónias. Poeta decadentista e fascinado pelo Oriente, publicou o seu primeiro livro de poesia em 1895, Exiladas, a que se seguiram vários outros como A Cinza dos Myrtos e O Sinal da Sombra. Foi juiz desembargador da Relação em Luanda e ministro da Justiça de Sidónio Pais. António Nobre e Camilo Pessanha contavam-se entre os seus amigos.
Continua Hipólito Raposo: «Na sala da sua livraria [biblioteca], em pouco espaço se dispunha e amontoava numerosa colecção de armas, artefactos, estofos, marfins, porcelanas, imagens, diverso documentário etnográfico dos povos da África, da Índia, de Macau, da Insulíndia…». Não será demasiado ousado imaginar que, arrumados algures numa estante, entre todos esses objetos encontravam-se também estes dois volumes que agora me pertencem.
Abro-os novamente. O volume I regista «Lisboa, janeiro 4, 1929». Em seguida, leio por baixo da assinatura no volume II: «8 de janeiro de 1897. Pangim, India». Foi precisamente aí, em Goa, para onde partiu em 1894, que Osório de Castro iniciou a sua carreira de magistrado. E faz-se luz: é por isso que o livro se encontra em tão mau estado. Foi adquirido pelo seu proprietário no início de carreira em Goa, e possivelmente depois acompanhou-o por África e Timor. Nessas mudanças deve ter-se perdido o volume I, pelo que, muitos anos mais tarde, já em Lisboa, Osório de Castro arranjou uma edição mais recente para não ficar com o segundo volume pendurado.
Recordo-me de uma passagem de Embalando a minha biblioteca, de Alberto Manguel – «os meus romances de Melville ainda têm traços de bolor polinésio» -, e fico quase emocionado com a referência a Pangim. Este volume maltratado é uma relíquia do império. Não o trocava por um novo.