Há homens com um rosto sobrenatural, e outros que têm aquela expressão arrancada a um ofício simples, esforçado, uma vida inteira de roda de algum eixo ferido e sem conserto, dando-se conta de que o mundo tem o hábito de restar fora de si mesmo, e que os homens chegam a deter imensuráveis visões e depois morrem a um dia da semana com um carimbo de dispensa na folha de serviços, esses tidos como inestimáveis por outras épocas. “Escrever (…) é rezar com raiva”, terá sido este o verso mais vezes referido na hora de fazer o recorte de alguém que esteve sempre embrulhado com a febre, com todo o alento e a fragilidade, e essa talvez fosse a característica mais notória da sua poesia, a lucidez daquilo que se arranca à doença, menos pelo seu conteúdo do que pela forma, e alguém notou em tempos como Armando Freitas Filho “aprimorou com requintes de crueldade um traço de personalidade comum aos hipocondríacos de pedra como ele: o poeta, não é de hoje, pensa todos os dias na morte”.
Há esses que em vez de uma autobiografia, elaboram a vida como relato e descrição de uma batalha, sem um inimigo certo, dando relevo ao que os acossa, encurrala, despenhando-se uma e outra vez no duro chão de cada instante. Não se dispondo a colaborar na récita do que mede a vida pelo futuro que se dá, preferia residir num presente ameaçado. Há quem faça da morte um instrumento de navegação, uma medida ou um critério entre a incrível densidade e heterogeneidade do material narrativo. “Estou de saída./ Está na hora./ Amanhã é feriado/ ou ferido?/ Estou entre o abraço/ e o adeus sem aceno”, anunciava ele em “Viagem e testamento”. Estabelecia um paralelo entre o corpo e a linguagem, essa frágil matéria que assume uma expressão rara apenas se enlouquecida por um ritmo que atravesse de forma injuriosa as sensações gerais, enlaçando as pequenas arestas e os ângulos superficiais da vida solitária dos seres humanos, ligando-os apenas por um instante vertiginoso, antes de os abandonar às margens incomunicáveis.
A doença foi um aliado de Freitas Filho, que estava sempre à cata de sinais desse súbito desarme. Outra das suas máximas de hipocondríaco convicto era: “O corpo é um traidor, trai você de maneira mórbida”. Há quem enderece a si mesmo essas missivas e se enrede em terrores, como se definisse um plano para a sua aniquilação, extorquindo de si mesmo uma atitude, uma fatalidade que possa espremer algo de inusitado dessas horas finais de um condenado. Ei-lo submetido a esse enlevo, como quem raspa o rosto em frente ao espelho, e de algum modo reconhece na impiedade do seu reflexo o que resta de épico no momento que vivemos: “Não há mais tempo/ de ler algo de largo fôlego./ Nem de reler o mar de Melville./ As metáforas de mar estão cansadas/ mas as ondas não cansam/ de bater no paredão de cada dia.// Não há mais tempo/ de paralisar-me para me ver imóvel/ no espelho amansado pelo uso ou pretendo/ me ver como os outros me veem/ sem cuidado narcísico e ilusão?// Não há mais tempo/ de limpar o céu das nuvens roucas/ e toda noite lidar com o equilíbrio/ de dormir na linha da cama/ sem saber se vou cair no sono/ ou se vou cair por terra.”
Numa resenha a “Lar” (2009), em que assinalava a força da decepção nesta poética, Marcos Siscar vincava como essa pode ser hoje a épica que nos resta: “Ao longo dos textos, o extravio, a ferrugem, o descompasso, o inacabamento, o corroído, o empilhado, toda a lógica do dano contida no canhoto (‘sinistro’) que se esfrega contra o gauche drummondiano, são índices de uma poética que se comenta, que expande sua metalinguagem. O drama se dilata, assumindo o risco de remeter ‘sem parar’, compulsivamente, a seu próprio inacabamento, a seu situado ‘castigo’. O poema ensina o sinistro de modo tão abundante que faz dele seu próprio flagelo.” A linguagem também pode ser um modo de se auto-medicar, de estabelecer uma distância, negociar um desencontro, gerar um intervalo ou interrupção. “Minha poesia, meu corpo e minha sombra procuram ‘um modo de sobreviver ao real’”, admitia o poeta numa entrevista. E se isto sinaliza esse lado intrusivo da vida, como se a eternidade se desfizesse contra nós, e o tempo fosse essa imagem móvel, essa espuma, isto também nos empurra para aquela noção de Roberto Juarroz de que “toda a arte é uma ruptura, uma fractura do real habitual para ter acesso a outra coisa, a uma forma inaparente do real, talvez o fundamento mesmo do real”.
Armando Freitas Filho parece ter-se feito um ser de linguagem para poder dissolver-se em tinta antes de receber o impacto de certas experiências no sangue. “Se o grande autor importa, pesa, incomoda/ escreva, e ponha a outra mão esticada/ destra ou sinistra, no peito do monstro/ mesclado de corpo e letra/ a fim de manter distância e cerimônia/ (apesar do gesto conter certa intimidade)/ e afastar a sombra que se alastra.” No reverso, também se pressente como este expediente imunitário vem por sua vez nutrir e robustecer a sua poesia, impondo-se um grau de exigência que se faz sentir como uma pena a que se condena aquele que escreve, revendo-a apenas para a elevar: “A primeira versão presa/ na Solitária da gaveta/ para cumprir pena de um dia/ de um ano, perpétua, de morte/ no olvido da escrivaninha, onde/ a outra pena lavrou a sentença –/ pena – entre a comutação e o cupim.” Há seres para quem só a diferença pode vir sugar e cuspir o veneno quotidiano, e se outros buscam elogios e honras, estes erguem barreiras. “Só sei ser íntimo ou não sei ser./ O que escrevo me ameaça de tão perto.” A esses mesmo o corpo lhes sabe como uma ameaçada fronteira, e dele o que extraem são lições sobre o fracasso, a dor. A escrita surge assim como uma extensão, como se ao poeta cumprisse uma evasão dos limites onde não se liberta do cheiro da sua própria morte. “Luto contra meu corpo desde o início./ Me tenho, escrevendo./ No teclado, ou coma caneta, o lápis./ Mas devido à rapidez/ com que penso e esqueço/ devia usar a pena de dois séculos atrás/ que casa melhor com o gesto incisivo/ que imagino, preciso/ com sua penugem de asa, com o bico/ de um pássaro qualquer, de rapina/ mergulhando, veloz e voraz, repetidamente/ no gargalo, na garganta do tinteiro/ para pegar, pescar, a voz úmida, submersa/ contínua e escura, que não pode secar.”
O poeta que inventara mil saídas, que de qualquer moléstia se corroía fantasiando doenças terminais, morreu há dias, de uma dessas complicações de saúde, aos 84 anos. Preocupava-se com o infinito, com a eternidade, talvez fosse a sua grande obsessão, e isso também lhe valia para saber a receita para compor ecos perduráveis, para admirar os grandiosos compositores que arrebatam de ouvido tremendas distâncias, que têm um grande consumo de épocas. Talvez fosse o que lhe tirava horas de sono, o que o levou a imaginar que pudesse escapar do seu corpo se lhe fosse possível uma transfusão através desse pacto que um poema estabelece entre quem escreve e quem lê. “Vampiro/ empírico ou fílmico/ quero seu sangue/ preciso/ mesmo que metafórico/ variável leitor, uma gota que seja/ em cada poema, como já foi dito/ para fortalecer o meu – pouco/ e rouco – velho, desordenado/ que já não chega aos extremos/ a fim de reanimar nosso pacto/ e apresentar a contraprova/ esperando que eles, entrelaçados/ imprimam mais força à tinta/ e convençam que ainda servem/ para edificar a vida/ do espírito e do corpo, que ainda/ são vinho e oferta, e podem/ bastar ao meu Deus, insaciável.” Também quando lhe perguntavam sobre a impressão que tinha quando ia aos arquivos para ver a evolução da sua mordida, ele reconheceu que às vezes isso o obrigava a mudar alguma coisa. “Revemos a própria obra como limpamos o tártaro dos dentes, digamos assim.” Trabalhava com a expectativa de que a sua poesia não envelhecesse por uns 40 anos, e, sendo filho único, procurou sempre irmãos mais velhos que o libertassem do sufoco de uma família castradora, e foi com 15 anos que foi misturando no sangue influências dessas que fazem daquilo uma sopa tumultuosa, sempre ao lume. “Minha poesia, de nascença, foi uma mixórdia de Carlos Drummond, João Cabral e Ferreira Gullar, meus mosqueteiros. A lição ainda levava valiosas pitadas indispensáveis de Manuel Bandeira. Portanto, para constituir a minha essência o mexido foi esse. Mas como eu adoro o Deus Drummond ele é quem me alimenta mais. Tenho, constante, o pedido de socorro à sua poesia magnífica. Uma verdadeira Bíblia.”
Nascido a 18 de fevereiro de 1940, pagou do seu bolso o livro com que se estreou, “Palavra”, lançado em 1963, aos 22 anos. Foi fazendo o seu caminho de forma discreta, em edições de autor, fazendo amizade e deixando-se guiar pelos poetas e leitores ou críticos que mais admirava. Foi levado pelo pai, muito tímido, quase sem abrir a boca, a casa de Manuel Bandeira, e uns anos depois ficaria próximo também de Drummond, e pela enorme confiança e cumplicidade que tinha com Ana Cristina Cesar, esta deu indicações à mãe para que lhe fossem confiados os seus manuscritos, e ele correspondeu ao defender da melhor forma o génio da amiga. Publicaria 19 livros ao longo de quase seis décadas, e se, como refere Fábio de Souza Andrade, num primeiro momento, a aproximação da forma experimental e das artes plásticas o conduziram para uma poesia gráfica, espiralada, quase abstracta em sua música paronomástica, a eclosão do sujo e inacabado da vida (evidenciando a influência de Gullar) deslocou a sua linguagem rumo ao inacabado da prosa do mundo, repleto de sobras. “Do encontro, choque, surge o poema como costura bruta ‘de pontos tortos’, cicatriz prévia”, adianta aquele crítico. Já o poeta Ricardo Rizzo vinca como a relação do som e sentido na sua poesia alcança um efeito hipnótico, e assinala ainda “uma qualidade compulsiva no andamento da forma se montando e das imagens se corporificando”, de tal modo que “a leitura se torna também um pouco compulsão, necessidade meio cega de ver aonde o poema vai dar. O arrasto da aliteração, o arranque, o ataque, o engate, o atrito, talvez sejam alguns dos muitos gestos com que o movimento dos poemas se constrói.”
Como Drummond, foi servidor público, tendo uma existência discreta em diversos órgãos do governo, sempre ligados à cultura. Foi investigador da Fundação Casa de Rui Barbosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro no Rio de Janeiro, investigador da Fundação Biblioteca Nacional e assessor no gabinete da presidência da Funarte. Outro aspecto que não poucas vezes é referido e que era um traço indelével da sua personalidade, tanto como da sua poesia, é a gaguez. “Não lembro de mim sem ser gago. É uma espécie de sombra oral. (…) Creio que minha poesia tem algo da minha gagueira, com muitas vírgulas. Adoro repetir-me para ver se acrescento algo desviante daquele assunto já estabelecido e pensado.” E depois lia muito, de tudo, reconhecendo que fez o seu percurso como um autodidacta, e afirmava que se não fizera faculdade, para grande infelicidade dos seus pais, era “formado em Antonio Candido”, o grande crítico literário brasileiro, com quem veio também a corresponder-se.
A sua poesia, mesmo nos últimos livros, ainda surge ressentida de uma infância represada, que assim foi bebendo de soluções inquietantes, germinando essa angústia interior, um pensamento magoado e negativo, que fez dele um perpétuo insone. “Nunca durmo bem, nunca vou em paz para o quarto. Já me disseram que Caetano Veloso não sabe a hora de ir dormir. O mesmo se dá comigo e, por isso, sempre adio esse momento. Gostaria de não ser angustiado, pois acredito que escreveria melhor, mais amplamente. A impressão que tenho é de que escrevo como que seguro por esse sentimento: ele me agarra o cangote, me puxa e me prende o braço. Tanto que muitos críticos falam que o que escrevo é arrancado, sincopado, cortado bruscamente.” De algum modo, aquela infância demasiado protegida instilou nele essa ânsia de abrir caminho a uma épica ao nível da interioridade. Um poema onde isto fica claro tem o título “Guerra e paz”… “Banho infantil em banheiro de adulto/ tem na banheira sua revelação de mar/ sob medida, para a coragem e o navio/ enfrentarem as primeiras ondas/ levando soldados de todas as fardas/ recolhidos na beira da praia de louça.// No chuveiro, tempestades e cachoeiras/ reguláveis caem nas montanhas azulejadas:/ frígidas, escaldantes, ao som dos estampidos/ do aquecedor, no liga e desliga brusco/ no faz de conta que são bombas de gás lançadas/ pelo inimigo aéreo, repentino e rasante.// No fim, no morno equilíbrio da paz/ de volta à água doméstica e ao sabão/ da mãe e do pai, que antes de limpar/ o sujo da guerra, inquieta e intriga/ com o fio de cabelo grudado e interrogativo:/ se não é da cabeça, braço, e perna, será de onde?”
Os poemas estão cheios das marcas dessa viagem vertical, dos ruídos de mundos intuídos, dos abalos e rombos no casco, e talvez aquela hipocondria folclórica dele não fosse senão o desgaste de andar sempre metido com fantasmas, levado de um lado para o outro, ele mesmo doando o seu sangue, e isso levou a que fosse depois tão rigoroso na dieta, imaginando que qualquer mal-estar pudesse ser desdobrado numa fatalidade qualquer. Vivia defendido no pacato bairro da Urca, no Rio de Janeiro, onde morava há décadas, entre os livros, e com a mulher Cristina e o filho Carlos (uma outra filha, Maria Fabriani, mora na Suécia), mas se lhe interessava o porvir, se indagava sobre um tempo além do seu, não se fazia rogado em receber em casa os poetas jovens que o procuravam, estava atento, lia-os, e a sua admiração não mirrou com os anos, não se tornou sovina, sabia fazer-se cúmplice, encorajar. “Não quero estar misturado com os jovens, quero estar de frente para eles, sem lhes dar as costas, pois sei que esses olhos que estou olhando agora e que também me olham, dentro da lógica da vida, me verão morrer”, disse numa entrevista. Aquela generosidade toda que tantos lhe reconheceram na hora em que se foi, talvez seja outro desses atributos que vem de uma urgência que tem de contender com a gaguez, e que aprende a necessidade de fixar o pensamento pelo rastejo, o cicio de insectos, desde “o do cupim cotidiano, no traçado/ das traças, só percebidos nos seus ofícios/ aos que apuram a escuta, e pinçam/ sem a mistura da mão e da máquina/ a passagem do tempo, o escoar da areia –/ grão grânulo gris – na ampulheta”. E se ele foi tão cuidadoso, o mais certo é que a morte também gagueje agora, e lhe permita seguir por aí, aproveitando a folga e o fulgor das gotas de sangue que os leitores lhe forem emprestando, para seguir o seu ofício eterno, aquela lição que o guiou neste enredo cerrado, sem receio de ser uma figura secundária num drama intemporal. “Quero juntar a coisa vulgar e barata à coisa maravilhosa e rica. Ainda não consegui isso plenamente. Trata-se de uma tarefa drummondiana, e acho que minha sina é morrer sempre aos pés dele, como uma onda do mar que vem, bate e morre.”