Polícia sem xerifes

As PM devem continuar a ser eminentemente um órgão administrativo, a quem cumpre fiscalizar o cumprimento das leis nacionais e dos regulamentos e normas municipais.

As Polícias Municipais (PM) do Porto e de Lisboa não são órgãos de polícia criminal. Nesse sentido apontam a Lei n.º 19/2004 (Lei das PM), o DL n.º 13/2017 (regime jurídico das PM do Porto e Lisboa) e sobretudo o parecer n.º 28/2008 do Conselho Consultivo da PGR, assim como a sua interpretação extensiva e vinculativa às PM de regime especial que a Procuradoria-Geral distrital produziu em 2018, a pedido da Câmara Municipal do Porto.

Decorre da Constituição que as PM cooperam «na manutenção da tranquilidade pública e na proteção das comunidades locais». O legislador quis, no texto constitucional, que as PM fizessem parte de uma resposta maior e mais abrangente na segurança das pessoas. Resposta, essa, na qual a cooperação com as forças policiais e com as comunidades locais é o instrumento central da atividade das PM.

Portugal tem estruturas policiais de excelência na investigação criminal, distribuídas e articuladas pela Lei de Organização da Investigação Criminal. Introduzir entropia num sistema que funciona é, para além da via-sacra de um percurso legislativo exigente, um desafio pouco exequível no atual contexto. A segurança merece um consenso alargado, o que não se compadece com soluços casuísticos.

É obvio que uma legislação com duas décadas requer do legislador um olhar crítico, em função das novas dinâmicas sociais e das novas abordagens à segurança das populações, que é a argamassa da liberdade individual e coletiva. Mas uma questão tão sensível como as competências das polícias merece um debate esclarecido, que só pode ser feito no seio da Assembleia da República. Discutir o que não existe apenas contribui para o ‘tal’ sentimento de insegurança.

Não sei se as políticas públicas de segurança vão evoluir no sentido de atribuir às PM outras competências, como, aliás, acontece em Espanha. Sei que, em tese, se podem encontrar argumentos a favor, como a agilização dos processos e a não duplicação de meios na salvaguarda dos direitos fundamentais dos detidos, em particular na sua apresentação às autoridades judiciárias no mais curto espaço de tempo e/ou na sua restituição à liberdade.

Também sei que o atual enquadramento legal já prevê algumas competências nesta área. Um agente da PM pode e deve deter quem, em flagrante delito, adote uma prática criminal punível com prisão. Mas deve apresentá-lo a quem tem competência de investigação criminal, a PSP. Seria conveniente que o pudesse apresentar diretamente ao Ministério Público? Creio que sim.

Ainda assim, as PM devem continuar a ser eminentemente um órgão administrativo, a quem cumpre fiscalizar o cumprimento das leis nacionais e dos regulamentos e normas municipais. Isto sem prejuízo de algumas funções da PSP poderem ser delegadas nas PM. E de, em situações críticas, a PSP poder solicitar um reforço de efetivos com os seus agentes destacados nas PM. Foi assim, no Porto, durante a pandemia.

Mas, no essencial, a proteção e segurança devem estar sob o monopólio do Estado. Conceptualmente, acredito que os presidentes de Câmara devem respeitar a autonomia técnica das suas PM, não lhes cabendo definir metodologias operacionais destes corpos de polícia. O presidente não é um xerife nem a PM o seu braço armado.

O que se deve exigir é que o Estado assuma as suas competências, disponibilizando os recursos materiais e os meios humanos necessários para o exercício pleno do monopólio da segurança. Se há falta de agentes na PSP, é essencial preencher essa lacuna para assegurar a capacidade de ação desta força policial. Assim como para garantir a sua tão importante visibilidade no espaço público, condição essencial para tranquilizar as pessoas e as afastar de impulsos securitários inspirados pelo sentimento de insegurança que lhes vem sendo instigado.