A armadilha

O mais lógico parecia ser o Governo voltar-se para o Chega para viabilizar o Orçamento. Por que não o fez? É aqui que começa a armadilha montada por Luís Montenegro ao Partido Socialista

Um Orçamento do é a tradução, em termos económicos, de um programa político. Assim sendo, como se compreende que o Governo tenha escolhido, para interlocutor, o principal partido da oposição? Parece um contrassenso. O PS tem a sua visão da sociedade, que é alternativa à do PSD, e por isso devia estar fora de causa pedirem-lhe para viabilizar o Orçamento do Governo.O mais lógico seria o Governo voltar-se para o Chega. Por que não o fez?

É aqui que começa a armadilha montada por Luís Montenegro ao Partido Socialista.

Montenegro é muito mais hábil do que parece. É da escola de António Costa e tem o mesmo instinto político.

Ora, o que pensou? Pensou que, endossando ao PS a responsabilidade de viabilizar o OE, duas coisas poderiam acontecer:

– Ou o PS mordia o isco e aceitava negociar;

– Ou dizia que não negociava e aí seria logo responsabilizado por um eventual chumbo.

Pedro Nuno Santos mordeu o isco, aceitou uma negociação com o Governo, e no fim apresentou apenas duas objeções: o IRS Jovem e a diminuição do IRC. Em centenas de medidas, para salvar a face e não se render em toda a linha, o PS recusava apenas duas.

E o que fez Montenegro?

Disse que essas duas medidas eram capitais, que não podia abdicar delas e acusou Pedro Nuno Santos de «inflexibilidade» e «radicalismo». O PS ficou entalado: ou deixava cair essas duas exigências e saía como derrotado em toda a linha, ou fazia finca-pé nelas, chumbava o OE, e surgia como o grande responsável pela realização de eleições.

Nas últimas entrevistas de Pedro Nuno Santos, sentia-se o seu desespero. Ele percebeu que sairia sempre a perder – acontecesse o que acontecesse. E decidiu optar pelo menor dos males: deixar passar o OE, abster-se. Até porque, para lá da pressão externa, que já seria razão suficiente, há a pressão interna.

Se o Orçamento fosse chumbado, a execução do PRR estaria em boa medida comprometida – e certos autarcas que já contam com essas verbas ficariam pendurados, ainda por cima no último ano do mandato. Os presidentes de Câmaras socialistas não podiam aceitar essa situação. 

Há outro partido nesta novela que está fora e continuará de fora: o Chega. André Ventura continuará a falar com arrogância, pois sabe que o PS já decidiu viabilizar o Orçamento do Estado. Caso contrário, estaria aflito.

Ele tem perfeita consciência de que, se houvesse eleições, seria o principal perdedor.

Não conseguiria nem de perto nem de longe os 50 deputados que alcançou nas últimas legislativas. Boa parte dos atuais deputados do Chega sairia da AR – e alguns sairiam sem nenhuma esperança de lá voltar; seria um adeus definitivo. Ora, como reagiriam muitos desses deputados a um voto que fosse decisivo para o Governo cair?

Haveria uma revolução na bancada.

Independentemente do ‘jogo do empurra’ a que temos assistido, das acusações recíprocas sobre quem terá mais ou menos responsabilidade num eventual chumbo do OE, há uma coisa a que nenhum partido pode fugir: o momento da votação. Quando o presidente da AR fizer a pergunta sacramental «Quem vota contra?», os deputados que se levantarem serão os responsáveis pelo eventual chumbo. E serão eles os penalizados. Seja o que for que Pedro Nuno Santos ou André Ventura tenham dito antes ou vierem a dizer depois, a imagem dos deputados a votar o Orçamento será aquela que ficará na retina dos eleitores se o Governo cair.  

E, caso isso acontecesse, e houvesse eleições, aconteceria com grande probabilidade o seguinte: 

1. A bancada que suporta o Governo cresceria substancialmente em número de deputados, porque as pessoas tenderiam a dar-lhe mais força para poder governar, não sendo de excluir a maioria absoluta;

2. O PS desceria muito, porque seria visto como o principal responsável pela crise, já que bastaria abster-se para a impedir;

3. O Chega desceria muitíssimo, pois mais uma vez juntar-se-ia à esquerda para derrotar o Governo. 

Isto é o que aconteceria se o OE fosse chumbado. E, exatamente por isto, tal não vai acontecer. Pedro Nuno Santos pode ser inábil, radical, mas não é suicida.

Ao cair na armadilha que Montenegro lhe montou, reforçada ontem com uma proposta dita ‘irrecusável’, o líder do PS não tem escapatória. Ficou condenado a abster-se na votação do OE. O OE vai, pois, passar. O que tem vantagens e inconvenientes: o país não será sujeito a novas eleições mas continuará por mais uns tempos ingovernável, pois a escassa maioria de que o Governo dispõe não lhe dá nenhuma margem de manobra.