O chavão ‘há uma justiça para ricos e uma justiça para pobres’ vai não vai aparece na vox populi ou na boca de quem comenta a justiça. É daquelas coisas que é tida por tão evidente que sai das bocas com tanta facilidade quanto um perdigoto. Ora, é preciso desconfiar das evidências, como diz Luísa Costa Gomes numa entrevista recente. Não quero com isto dizer que não seja verdadeiro o chavão, no seu sentido essencial, ou seja, que quem tem mais meios pode defender-se, em tese, melhor. O que quero dizer é que o chavão costuma aparecer carregado de um sentido pejorativo, quer quanto ao que descreve, quer quanto ao que propõe implícita ou explicitamente, que leva ao disparate, ao perigo e/ou à hipocrisia. Principalmente por três razões. A primeira prende-se com a tendência para apresentar a coisa como uma originalidade (e, portanto, uma grande perversão intrínseca) do sistema de justiça, como se fosse só aí que os mais afortunados com meios materiais e os menos afortunados têm mais ou menos possibilidades de defenderem os seus direitos e os seus interesses. Então não há, também, uma saúde para ricos e uma para pobres, e uma educação, e uma habitação, e muitos mais et ceteras? O mal é do mundo, não é da justiça, portanto minhas senhoras e meus senhores não se apresente o que é uma questão de todo o corpo como sendo questão especial do braço ou da perna, porque isso não resolve nada e, pior, dá uma visão distorcida das reais questões do membro. A segunda razão prende-se com o principal remédio apresentado para esta desigualdade, que é cortar nos meios de defender direitos e interesses. Como uns podem mais do que outros, então, dizem os iluminados, cortamos. E lá vem a conversa do garantismo hiperbólico de que falam académicos que não sabem nada do assunto ou altas personalidades que, mal tomam posse, são vitimadas pelo vírus do corte no que já está cortado. Ou seja, e mal comparando: como uns comem mais e melhor do que outros, então vamos cortar na comida de todos. Problema: é que não só não há comida a mais, como, cortando, sofrem mais os pobres, que já comiam mal, e agora comem pior.
Mas a terceira razão é a mais importante, e a que me nauseia mais quando ouço ou leio certas opiniões, mesmo (ou especialmente) as professorais, acerca do cancro que é a ‘justiça para ricos e a justiça para pobres’. É que a preocupação parece ser com a melhor justiça para os ricos, por terem mais meios, não parece ser com a pior justiça para pobres, por terem menos meios. E esta última é que deveria ser a preocupação. Parece até, ao frisarem a primeira parte da equação, que querem o mal para todos, ou seja, que o pior se mantenha e que o melhor se degrade. Ora, só pode ser por desconhecimento, que é um mal que costuma acometer treinadores e professores de bancada, que falam da merda sem nunca lhe terem sentido o cheiro, e que emprenham de ouvido. Ora, a grande preocupação deveria ser como estão as coisas na defesa dos que têm menos meios. Como está o apoio judiciário, como está a ideia do defensor público, como estão as custas judiciais, como estão os vieses cognitivos e decisórios sobre certo tipo de pessoas, como está a literacia cidadã da justiça, e muitos outros et ceteras. Mas isto parece não interessar muito, nem sequer ao chamado jornalismo judiciário, que prefere relatar entranhas de processos e transcrever bocados de peças processuais a fazer investigação sobre o sistema de justiça; jornalismo esse que depois um dia descobre, atónito (e revoltado, claro), por exemplo que o sistema prisional tem problemas, mas só quando fogem reclusos de uma cadeia. Antes disso, andaram a dormitar, enchendo as páginas e as bocas (e os ouvidos, et pour cause) com a novela de uma dúzia de processos e com chavões – sempre os mesmos.