Numerário. Tem os dias contados? Não para breve

Especialistas admitem que “não se prevê que num prazo médio deixe de haver utilização de numerário” e mesmo que haja mais adesão em relação aos pagamentos eletrónicos há um movimento europeu no sentido de promover maior liberdade de escolha e com isso reforçar o valor do numerário.

O dinheiro físico tem-se tornado cada vez mais invisível. Aos cartões de crédito e aplicações bancárias, que há muito permitem fazer pagamentos virtuais e entraram no dia-a-dia dos portugueses, juntaram-se novas formas de pagamento desenvolvidas por bancos e pelas mais variadas plataformas. Mas isso significa que o numerário vai acabar? Vinay Pranjivan, economista da Deco afasta esse cenário. “Não se prevê que a médio prazo deixe de haver utilização de numerário. Obviamente que há cada vez uma maior adesão a usar pagamentos eletrónicos”, diz e acrescenta que há um movimento europeu no sentido de promover maior liberdade de escolha, mas com isso reforçar o valor do numerário.

“Existe desde 28 de junho do ano passado uma proposta de regulamento europeu apresentado pela Comissão Europeia que está em discussão e que diz respeito ao curso legal do numerário, em que há a preocupação de manter o numerário em paralelo às moedas eletrónicas e ao futuro euro digital. Este paralelo é fundamental porque deve ser permitido que o consumidor possa escolher o meio de pagamento que quiser, aquele que mais lhe convém num determinado momento de pagamento”, mas mantendo sempre a discussão que já existe em Portugal que é a aceitação de pagamentos em numerário.

Uma falha que, de acordo com o responsável, se deve ao facto de não haver um quadro sancionatório para quem não aceita pagamentos em notas ou em moedas. “O que é que isto está a levar? Está a levar a que empresas coloquem um cartaz nos seus locais de comércio a dizer que não são aceites pagamentos em numerário e sem ser alvos de qualquer multa. Acontece isso em concertos, em padarias, em hospitais, em que para pagar em numerário é preciso ir a determinado balcão, num local mais difícil de acesso ou com filas enormes. Mas tudo isto está a ser feito porque falhou em Portugal a criação de um quadro sancionatório”, diz.

Ainda assim, o economista admite que o regulamento possa abrir abrir portas em que coloque entraves em determinadas situações. E dá exemplos: “Pagar um café com uma nota de 200 euros pode ser recusado porque é desproporcionado, agora se pagar com uma moeda de um euro tem de ser aceite”.

Outra questão a ter em conta diz respeito aos dados. “O meu histórico de transação é conhecido se pagar apenas com meios eletrónicos”. Aliás, a China quer implementar multas a instituições públicas e privadas que se recusem a aceitar pagamentos em dinheiro, de forma a “proteger os direitos dos cidadãos à utilização de dinheiro líquido”.

Suécia recua

Vinay Pranjivan lembra ainda que a Suécia que acelerava a passos largos para acabar com o dinheiro vivo já está a mudar o discurso porque, de acordo com o mesmo, “apercebeu-se dos riscos que os outros países tinham alertado que é o perigo da exclusão financeira, particularmente para grupos de cidadãos considerados vulneráveis”, acenando que esses riscos estão relacionados com o facto de passarem “a não ter acesso nem a cash, nem aos pagamentos digitais, nomeadamente pelo custo de ter um smartphone, custos e problemas de conectividade porque tudo dependeria de ter acesso à internet, além de terem de saber de o usar”. O economista questiona ainda: “Havendo uma falha de rede como se processam os pagamentos? Na base da confiança? Isso não existe”.

Uma opinião partilhada por Mário Frota, mandatário da Denária Portugal, plataforma que defende os pagamentos em numerário. “A Suécia está a fazer o caminho de retorno ao dinheiro físico depois de haver apostado obsessivamente no digital – o numerário é ainda o valor de ‘refúgio – e na Alemanha 80% dos valores em circulação são anda em dinheiro físico”, refere ao nosso jornal. E acrescenta: “Com o eventual desaparecimento do dinheiro físico fica logo em causa o ‘direito de escolha do consumidor’, no quadro da proteção dos seus interesses económicos, constitucionalmente consagrada e com suporte na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Depois, o valor inclusão: não se olvide que temos, em Portugal, cerca de três milhões de pessoas esmagadas entre o limiar da miséria e o da pobreza. Sem acesso às instituições de crédito e às sociedades financeiras. O dinheiro físico inclui, o dinheiro digital exclui”.

E vai mais longe ao defender que “o dinheiro físico é uma necessidade instante” e ironiza: “Parafraseando Mark Twain, ‘os rumores acerca da morte das notas em papel e das moedas metálicas é naturalmente exagerado’”.

O economista da Deco assegura ainda que o acesso a dinheiro vivo tem também vantagens para as gerações mais novas, sentido da gestão do seu orçamento, uma questão que ganha maior revelo para as famílias com maiores dificuldades económicas. “Um dos conselhos que damos é irem ao supermercado com numerário e com o dinheiro contado para a despesa que querem fazer para não haver desvios, se tiverem um cartão podem ultrapassar esse valor que pretendiam gastar e esse exercício de gestão orçamental é muito útil para criar disciplina”.

Ideia de Bruxelas

O Banco Central Europeu (BCE) também admite que a digitalização está a mudar a forma como pagamos e a pensar nisso lançou a ideia do euro digital. Trata-se de uma forma eletrónica de dinheiro para o mundo digitalizado que daria aos consumidores a opção de utilizar moeda do banco central em formato digital, complementando as notas e moedas de euro. “Um euro digital facilitaria a vida das pessoas, ao proporcionar algo que ainda não existe: um meio de pagamento digital universalmente aceite em toda a área do euro e passível de ser utilizado em pagamentos em estabelecimentos comerciais, online e entre pessoas. Tal como o numerário, um euro digital seria isento de riscos, amplamente acessível, fácil de utilizar e gratuito para utilização básica”, referindo que “além disso, um euro digital reforçaria a autonomia estratégica e a soberania monetária da área do euro, ao melhorar a eficiência do ecossistema de pagamentos europeu no seu todo, fomentar a inovação e aumentar a resiliência a potenciais ciberataques ou perturbações técnicas, como cortes de energia”.

Recorde-se que a 28 de junho, a Comissão Europeia apresentou um projeto de proposta legislativa para um possível euro digital. O objetivo da legislação é assegurar que qualquer futuro euro digital dê às pessoas e empresas a opção adicional de pagar com uma forma de moeda pública generalizadamente aceite, barata, segura, resiliente e passível de ser utilizada em toda a área do euro.

Vinay Pranjivan lembra, no entanto, que este projeto ainda está numa fase de desenho e obriga a perceber, por exemplo, a tecnologia que vai estar por detrás, referindo que do lado dos “consumidores há uma grande pretensão para que esses serviços sejam gratuitos, a não ser que os bancos disponibilizem serviços mais especializados ou premium”.

Também Mário Frota comenta as questões em cima da mesa. “Há uma proposta legislativa sobre o curso legal das notas e moedas de euro, que visa salvaguardar o papel do numerário, garantir que este é amplamente aceite como meio de pagamento para permanecer facilmente acessível para as pessoas e as empresas em toda a área do euro” e uma proposta legislativa que estabelece o quadro jurídico para um eventual euro digital como complemento das notas e moedas de euro que “viabilizará uma forma de pagamento digital alternativa às soluções privadas atualmente existentes para as pessoas e as empresas na área do euro, com base numa forma de dinheiro público amplamente aceite, barata, segura e resiliente” E recorda que, após adoção pelo Parlamento Europeu e o Conselho, a proposta estabelecerá o quadro jurídico para o euro digital, mas caberá, em última análise, ao Banco Central Europeu decidir se e quando emitir o euro digital.