Um pontapé no estômago do misterioso homem solitário

Mario Benedetti, poeta uruguaio, quis ser guarda-redes, mas o sonho morreu-lhe na infância

Quando a mãe queria encontrar Mario procurava-o no descampado mais perto de casa: era um dos dois garotos que se posicionavam, atentos, entre duas pedras que faziam de balizas. O problema era, depois, arrastá-lo desse campo de futebol improvisado. Mario sempre foi um daqueles que aprendeu desde cedo a dizer NÃO! E continuou a dizê-lo até ao fim da sua vida. Foi ainda muito menino que o arquero Benedetti sofreu o golo mais doloroso de todos: numa baliza dessa vez a sério, num torneio infantil de Paso de los Toros, no Departamento de Tacuarembó, no norte do Uruguai, enfrentou com valentia o ponta-de-lança adversário que tinha o dobro do seu tamanho. Recebeu a bola chutada com violência em plena boca do estômago, tombou com ela para dentro da baliza, ficou com mazelas para sempre.

Um ano depois desse momento frustrante, houve mais frustração a envolver os Benedetti Farrugia: o pai de Mario, que tinha uma farmácia, viu o negócio ir à falência. Se já eram remediados, ultrapassaram a fronteira da pobreza. E, mais ainda, da tristeza. Talvez aí, Mario tenha começado a escrever nas entrelinhas da poesia que o tornou inimitável. «Es una lástima que no estés conmigo/cuando miro el reloj y son las cinco/y soy una manija que calcula intereses/o dos manos que saltan sobre cuarenta teclas/o un oído que escucha como ladra el teléfono/un tipo que hace números y les saca verdades». A verdade dos números negativos enviou a família Benedetti para Montevidéu, cidade de todas as oportunidades. Mario estudou na Deutsche Schule Montevideo até que o pai, horrorizado, percebeu que lhe injetavam a ideologia nazi. Então passou para o Liceo Miranda. E trabalhava ao mesmo tempo.Tinha 14 anos.Foi estenógrafo, tradutor e, finalmente, jornalista. Escrevia. Escrevia muito. A sua escrita fazia sentido. Batia ao ritmo do seu coração definitivamente magoado como quando sofreu o golo de um adversário com o dobro do seu tamanho e ouviu gargalhadas de escárnio que feriam como balas.

Em 1973 a ditadura militar tomou conta do Uruguai e Mario deixou de ter espaço no país. Entrou pelos labirintos do exílio, primeiro em Cuba, depois em Espanha. Havia agora quem escrevesse sobre ele e sobre os seus golos sofridos. Amigos, camaradas, companheiros, gabavam-se da proeza de terem marcado golos nas balizas que defendera. Mario sorria e queixava-se: «Creio que as minhas últimas, vá lá, cinquenta defesas de uma baliza tiveram lugar em jogos improvisados entre intelectuais. Num deles, Eduardo Galeano marcou-me um golo infame, a mim, Mario Benedetti, algo pouco menos do que geracional – para cúmulo sublinhado por uma fotografia de ignomínia». Galeano tinha menos vinte anos do que Benedetti, levou vantagem na cancha. Já o poeta mexicano, Efraín Huerta Romo, que era mais pela idade de Mario, desavergonhou-se da mesma forma em Textos Profanos: «Numa solarenta manhã, nas areias prateadas de Jibacoa (uma praia de Cuba), meti dois golos ao arquero uruguaio Mario Benedetti». Dois. Logo dois. E o portero lamentava-se: «Nunca ninguém escreveu sobre as defesas que fiz. Mas isso, como todos sabemos, não faz notícia na vida de um guarda-redes». E filosofava: «Para um guardameta a real dimensão da baliza é de, aproximadamente, um quilómetro de largura. E ele, por mais que se persigne, sente-se ali como Gulliver no país dos gigantes, sabedor que um deles acabará por fuzilá-lo sem piedade». Para Mario, os guarda-redes tinham uma aura especial e via-os como que flutuando por baixo da trave com um ar distante, misterioso, solitário e impassível: «En el reino del área no es preciso correr, sino volar».

Nas balizas, Benedetti voou pouco e como pôde. O pontapé fatal da infância ordenou que passasse a sofrer de asma e de deficiências intestinais até ao dia da sua morte, 17 de maio de 2009. Na véspera chamou a sua secretária, Ariel Silva, para a beira do seu leito, e recitou para que ela tomasse nota o derradeiro poema arfante: «Mi vida ha sido como una farsa/Mi arte ha consistido/En que esta no se notara demasiado/He sido como un levitador en la vejez/El brillo marrón de los azulejos/Jamás se separó de mi piel…». Ficou assim, dependurado em reticências, como se estivesse decidido a voltar da morte um dia qualquer em que pudesse acabá-lo. Ele, que fora amigo de CheGuevara, e que dizia a toda a gente que ambos tinham duas coisas em comum, a asma e terem sido guarda-redes, também não esqueceu o Che no dia em que o fuzilaram em La Higuera, nas montanhas da Bolívia: «Donde estés, si es que estás, si estás llegando, será una pena que no exista Dios. Mas habrá otros claro que habrá otros dignos de recibirte,comandante!»