As anedotas antissemitas contêm muitas vezes um grão de verdade, como notou certa vez George Steiner. E depois relatou esta, passada a limpo por Hegel: «Deus aparece e, na sua mão direita, segura os textos sagrados da revelação e da promessa do céu; na sua mão esquerda, o diário Die Berliner Gazette. O judeu prefere ficar com o jornal». Steiner reconhece na anedota antissemita de Hegel uma verdade profunda: «os judeus são apaixonados pelo ductus, a corrente interna da história e do tempo. E talvez não tenha sido por acaso que Karl Marx, Sigmund Freud e Einstein (com a grande exceção de Darwin, claro) tenham nascido todos no mesmo século». Na morte de Lily Ebert, uma sobrevivente do Holocausto que morreu esta quarta-feira aos 100 anos, e cuja história alcançou uma audiência global depois de procurar a família do soldado que a libertou de uma marcha da morte no final da II Guerra, foi uma vez mais feita a distinção entre a história e a memória, uma vez que aquilo que os sobreviventes do maior crime do homem contra o homem fizeram foi impedir que os a época lavasse as mãos dos seus crimes, e deixasse de sentir como os atos hediondos a que foram submetidos seis milhões de judeus era, no fundo, uma tragédia pessoal. Nas profundezas de Auschwitz, Ebert fez uma promessa a si mesma: a de que, se sobrevivesse, dedicaria o resto da sua vida a garantir que o mundo teria uma compreensão íntima daquilo por que ela, a sua família e tantos outros passaram. Não nesses caracteres redondos dos livros de História, não como se homem soprasse o pó para reaver a firmeza de um relato, mas numa letra tremida, nessa tinta que parece ainda palpitar e que com um gesto borra o frágil papel onde foi inscrita.
Em julho de 1944, depois das tropas nazis terem invadido a Hungria, ocupando várias cidades, entre elas Bonyhád, onde Lily Ebert nascera 20 anos antes, ela e os membros da sua família foram metidos em vagões usados para o transporte de gado e enviados para o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, onde, à chegada, se viu separada da mãe e de duas irmãs, que foram levados de imediato para as câmaras de gás. Estavam entre cerca de 440 mil judeus que se viram deportados entre maio e julho desse ano, a maioria para o mais infame dos campos de concentração nazis. Depois de terem visto os seus bens confiscados, depois de terem sido submetidos a um recolher obrigatório que durou semanas, foi a vez de os próprios agentes da polícia húngara, empunhando armas, os forçarem a mudar-se para um gueto. Parte do terror passava por a nenhum momento terem podido imaginar aquilo que os esperava. Isto talvez ofereça o contexto essencial à anedota de Hegel, pois os judeus fazem parte daquele grupo muito particular de pessoas que se habituaram a ler os jornais com uma particular atenção, sabendo que momentos em que as tensões sociais e a instabilidade política podem muitas vezes soar como um aviso de que está na hora de fazer as malas. Por isso, é normal que os textos sagrados possam ser dispensados a favor do jornal de maior circulação do país onde residem. Muitas vezes, a compreensão daquilo que se lê nas entrelinhas é um ato de sobrevivência.
Ao chegar a Auschwitz, Lily, que nas suas memórias relata uma infância idílica, com as suas quatro irmãs e dois irmãos, ao ver Bela e Berta, juntamente com a mãe, serem levadas para a esquerda, enquanto ela e as outras duas irmãs foram levadas para a direita, não percebeu o que se estava a passar. Também o cheiro não lhe disse nada, ou o fumo que saía de uma imensa chaminé à distância. Foi então que outros prisioneiros lhe explicaram o quão fundo podia chegar aquele pesadelo. Em A Promessa de Lily (Porto Editora), ela relata o momento de transtorno em que se deu conta de que tinha sido levada para uma «fábrica de morte», e que eles eram o «combustível».
Em outubro de 1944, Lily e as duas irmãs sobreviventes foram enviadas para Altenburg, na Alemanha, um subcampo de Buchenwald que funcionava como fábrica de munições. Com o país à beira da rendição, que chegaria em abril de 1945, os nazis enviaram-nas entre duas mil pessoas numa marcha da morte, mas quando as forças americanas começaram a bombardear a área, os nazis fugiram, permitindo que as tropas aliadas as resgatassem. Mais tarde, em 1956, Lily reencontrou o seu irmão, Imi, que tinha sido enviado do gueto para um campo de trabalho. Seguiu-se uma viagem tortuosa pela Alemanha, Suíça e Israel, onde Ebert conheceu o seu futuro marido, Shmuel Ebert, também ele húngaro e que trabalhava no setor das importações e exportações. Durante uns anos empregou-se numa fábrica de colchões em Telavive, e ali se casou em 1948 e teve três filhos: Esther, que morreu de cancro em 2012, Bilha e Ahron, que lhe sobreviveram. Sobrevive-lhe também a sua irmã Piri Engelman, e ainda 10 netos, 38 bisnetos e um tetraneto.
Em meados da década de 1960, a família mudou-se para Londres. Aí, Lily juntou-se a um grupo de apoio a sobreviventes e começou a escrever as suas memórias. Em 1992, foi convidada por um especialista em traumas para participar numa conferência sobre aquilo que vivera. Viria a fundar o Centro de Sobreviventes do Holocausto, bem como uma organização congénere que proporcionava terapia a sobreviventes necessitados. Falou em escolas e no Parlamento e, em 2015, foi galardoada com a Medalha do Império Britânico pelos seus esforços na educação e sensibilização para o Holocausto. Em 2023, foi nomeada membro da Ordem Britânica pelo Rei Carlos III pelos serviços prestados à educação sobre o Holocausto.
Em 5 de julho de 2020, o bisneto de Lily, Dov Forman, publicou nas redes sociais uma fotografia de um bilhete que um soldado tinha escrito à sua bisavó aquando da sua libertação. O Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau republicou o post, que recebeu mais de um milhão de visualizações no Twitter. Esta publicação captou a atenção de alguém que tinha conhecido o soldado e, apesar de ele ter morrido, os seus filhos organizaram uma chamada via Zoom para conhecerem Lily Ebert. Foi depois desta experiência que ela e o bisneto tiveram a ideia de recorrer às redes sociais para alcançar um público mais vasto e continuar a transmitir a sua história. Em fevereiro de 2021, Forman criou uma conta no TikTok onde partilhava vídeos em que a bisavó relatava as suas memórias sobre o Holocausto e os anos que se seguiram. Com dois milhões de seguidores, a conta transformou-se num fórum onde outros sobreviventes e especialistas discutiam as origens e repercussões do antissemitismo, celebrando a vida quotidiana judaica.