Não faltam exemplos daquela literatura que se caracteriza pela pressa em ver-se subsumida a uma sinopse. Que até colabora para retirar todos os obstáculos do caminho, ficando gratamente refém de uma temática, consolando-se com a ideia de corresponder a um desígnio certo. Também se pode imaginar que aquilo que faz o gado é uma tendência para se deixar marcar pelo ferrete. Mas depois, e um pouco de lado, há aqueles que sentem o mundo como uma abjeção íntima. Não faltam fábulas que nascem da vigilância do próprio corpo, como se fosse um estranho, até um inimigo. Talvez apenas um somatório de tudo o que escolhemos ignorar. A Bíblia define como “carne” o Homem do qual narra a epopeia; não contraposta ao “espírito”, adianta Claudio Magris, antes unidade indissolúvel de corpo e espírito, carne frágil e mortal, mas sanguínea e gloriosa. “Talvez um gosto esterilmente refinado e privado do sentido do além não possa compreender essa sacra carnalidade, como aquela aristocracia francesa do século XVIII que se lamentava que o Espírito Santo – para a teologia, inspirador, ou melhor, autor da Bíblia – escrevesse tão mal, ou seja, de modo tão pouco elegante.” Borges lembra-se do seu espanto por ter conseguido entender a prosa de Kafka quando fazia as suas primeiras tentativas para aprender o idioma alemão. Em seu entender, a força muito particular da sua escrita advém de tentar estabelecer algo de eterno. Ao transmutar as circunstâncias e as aflições em fábulas, Borges vê-o a redigir pesadelos num estilo límpido, e frisa que não é em vão que este se empenhou na leitura das Escrituras, do mesmo que foi um leitor devoto de Flaubert, de Goethe e de Swift. “Podemos ler Kafka e assumir que as suas fábulas são tão antigas como a história, que esses sonhos foram sonhados por homens de outra época, sem necessidade de os vincular à Alemanha ou à Arábia. (…) E quando Kafka faz referências, é profético.”
O confronto decisivo de alguns escritores com as suas épocas exige que se removam, instalando-se numa zona sagrada que lhes permita reaver o mundo a partir dos seus traumas. Refugiam-se em lugares frágeis e luminosos, detalhando essas regiões, desenhando um mapa pessoal dos distintos lugares aos quais as suas vidas estão ligadas. Numa crítica que escreveu nas páginas do Sol, Filipa Melo mostrava essa rutura decisiva que ocorre nas páginas de “A Vegetariana”, de Han Kang, quando uma mulher renuncia à carne, e como essa recusa gera um conflito que traz à superfície uma série de elementos de conformação que, se questionados, empurram o mundo e a vida familiar da protagonista para uma aflitiva deriva onírica. “Quase nunca escutamos a protagonista, a não ser em monólogos surrealistas que relatam sonhos e delírios. Diferida, a experiência-limite de Yeong-hye, a mulher que rejeita a carne e as convenções e deseja ultrapassar as fronteiras entre o humano e o vegetal, torna-se ainda mais enigmática e alegórica”, escreve Filipa Melo. Vincando o cunho kafkiano (e lembra que Kafka era ele mesmo vegetariano), e o registo bastante cru da linguagem, a crítica assinala como “a ascese, violação e metamorfose do corpo de Yeong-hye torna-se, página a página, um ato revolucionário com alcance metafórico e universal”. Forçada a desdobrar-se em entrevistas depois do inesperado êxito que o livro conseguiu fora da Coreia do Sul, onde até então era visto sobretudo como uma obra tremendamente bizarra, Han Kang esclareceu que a sua intenção foi usar o vegetarianismo como arma subversiva uma vez que este corresponde a “uma forma perfeccionista de ser puro”, totalmente pacífica. Por outro lado, quando esta escolha da personagem enfrenta o total repúdio daqueles que a cercam, esse confronto vai tornar-se dilacerante, empurrando-a para uma “rejeição radical do mundo civilizado e da violência autoinfligida (automutilação, promiscuidade sexual, anorexia nervosa)”, como refere Filipa Melo, e que conduzem Yeong-hye a uma tentativa de fusão extrema com a natureza, logo, à morte.
No centro da obra de Kang está este efeito de constante denúncia do quadro repressivo das sociedades modernas, dessa gramática burocrática que nos sujeita a uma performance desvitalizada, a gestos deformados, a exibir um rosto desfigurado, um sorriso que faz dele uma mera caricatura. Esta maldição lançada sobre a vida por toda a parte, avilta e humilha, não somente a criação, mas o homem uma vez que a sua dignidade depende da conformidade entre os seus gestos e escolhas e a sua consciência. Certas opções pessoais, tornam-se tão ameaçadoras precisamente por porem a nu a estrutura corrosiva e violenta da nossa realidade, cujas fundações assentam sobre uma indiferença constante a formas de predação. A carne já não é apenas um elemento da nossa aparência, mas sobre ela, sobre a forma como satisfaz ou se recusa deve ler-se hoje toda uma ética nascente. Cercados de máquinas com os seus protocolos e programas complexos, todo esse quadro de vigilância permanente e é o suficiente para nos fazer sentir criminosos, o que serve para nos tornar dóceis. Mas, nos nossos dias, como demonstra Kang, as ações mais revolucionárias passam simplesmente pela recusa de alguns homens em identificar-se com a sua imagem social. Aquela vegetariana encarna não apenas a crise ecológica, mas esse elemento paranoico de toda uma realidade condenada, cada vez mais opressiva por se reconhecer insustentável. É esse peso que é lançada sobre cada um de nós na forma de uma maldição absurda, uma vez que aquilo que é esperada de cada homem é que abdique precisamente daquilo que o identifica interiormente como tal, que renegue qualquer movimento de vida interior, qualquer espasmo de rebelião, e prossiga a sua vida sem nunca confrontar o estado do mundo com as suas escolhas pessoais. Afinal, escreve Kafka, “hoje em dia, o trabalho de carrasco é como qualquer outro: respeitável e bem pago. Então, porque é que não há de haver um carrasco por trás de cada funcionário respeitável? Os funcionários transformam os homens vivos e mutáveis em corpos mortos, reduzindo-os a números incapazes de qualquer mudança, que apenas servem para o arquivo.” São os passos que levam a este resgate de si mesmo que dão alcance à obra de Han Kang. Na serenidade desses atos de recusa parece inscrever-se, hoje, o efeito mais devastador, perante uma sociedade cujo edifício – “de uma imponência que parece estar no limite do que um homem pode suportar” –, para funcionar, depende da colaboração e cumplicidade de todos.
Na passada quinta-feira, a Academia Sueca distinguiu pela primeira vez nos seus 123 anos uma mulher asiática ao atribuir o Nobel da Literatura a Han Kang. A autora consegue também o mais prestigiado galardão das letras para a Coreia do Sul, tendo a imprensa nacional ressaltado o facto de este ser mais um sinal da enorme força de irradiação da cultura daquele país nos nossos dias. O The New York Times sublinhava que o prémio vinha cimentar a influências das artes e da cultura daquele país na sequência do Óscar de melhor filme atribuído a “Parasitas”, de Bong Joon Ho, em 2020, e ao retumbante êxito de “Squid Game”, a série mais vista de sempre na Netflix e de bandas de K-pop como BTS e Blackpink. Contudo, o diário norte-americano ressalva que, se a notícia foi acolhida de forma efusiva e celebrada como uma conquista cultural para a Coreia do Sul, quem quer que esteja minimamente familiarizado com a obra de Han Kang e de outras romancistas e poetas que estão a sair das sombras e a ganhar expressão numa denúncia contra os elementos mais repressivos da cultura sul-coreana, que se mantém profundamente patriarcal e misógina. De resto, o Times lembra que até ao inesperado anúncio da Academia Sueca, os círculos da crítica literária da Coreia do Sul, quase inteiramente dominados por homens, há muito que apostavam no poeta Ko Un como o mais provável candidato ao Nobel. Ano após ano, tinha-se tornado um ritual os repórteres locais reunirem-se à porta de sua casa quando o anúncio do Nobel estava iminente. Isto até surgirem um conjunto de alegações de abuso sexual contra ele. Não consta que um só jornalista tenha aguardado à porta de casa de Han Kang nesta quinta-feira. De qualquer modo, quando o anúncio foi feito, a reação dela foi transmitida pelo pai, também ele um romancista. Han Seung-won, de 84 anos, disse aos jornalistas sul-coreanos que a filha tinha decidido não dar uma conferência de imprensa para falar sobre o Nobel. “Ela disse-me que não estava com disposição para celebrar numa altura em que as pessoas morrem todos os dias em conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente”, adiantou.
Mais conhecida no seu país pelo livro “Atos Humanos”, publicado entre nós pela Dom Quixote (tal como os outros três títulos da autora – O Livro Branco e Lições de Grego, além do já referido A Vegetariana), um romance sobre o massacre que se seguiu a uma onda de protestos pró-democracia na região de Gwangju (de onde Han Kang provém), em 1980, este livro levou o governo de Park Geun-hye, a presidente conservadora da Coreia do Sul de 2013 até à sua destituição em 2017, a colocar Kang numa “lista negra” de escritores, artistas e realizadores considerados hostis e excluídos dos programas de apoio sob a alçada do executivo.