Perante a implacável ofensiva do Estado de Israel após os ataques do Hamas em outubro do ano passado, vários movimentos de judeus progressistas têm reconhecido as tensões crescentes entre o sionismo e a Diáspora. Se George Steiner, o mais destacado intelectual judeu dos últimos anos, atribuía a esta o elemento messiânico e distintivo do povo judeu, recentemente o filósofo italiano Giorgio Agamben assinou um texto polémico em que defende que o sionismo irá levar ao fim do judaísmo.
Ameaça agora o mundo uma época implacável. E de algum modo, seja pela aquiescência ou pela indiferença, todos a forjámos, nós, que em breve também estaremos entre as suas vítimas. Como assinalava Günther Grass nuns versos, este tempo não segue qualquer moral, desfez-se dos princípios e da clareza que nasceu do sofrimento, e contra a textura da racionalidade impotente, a fortaleza hoje cresce por toda a parte… “O medo centro-europeu – rico e vulnerável –/ cheira a suor nos seus rascunhos para um muro defensivo: como uma fortaleza a Terra de Novembro quer agora segurança/ quanto a Negros, Árabes, Judeus, Turcos, Ciganos.// Como fronteira a leste a Polónia servirá de novo:/ assim, velozes, repensamos a história – em proveito próprio./ Construir castelos sempre foi a nossa maior alegria,/ levantar muralhas, escavar o fosso;/ e contra a brutalidade, depressões, estupidez e ataques de melancolia/ sempre algum Hölderlin aliviou com poemas o nosso fardo.”
Depois dos horrores que qualificaram intimamente o século passado, hoje é evidente como retrocedemos, retrocedemos recaindo em apetites grosseiros, e desde logo livrando-nos do remorso e da luz que este mantém acesa toda a noite. Como se sabe, a história sempre foi o privilégio e o terror de uns poucos. Estamos corrompidos por lendas cruelmente selectivas, por uma propaganda feroz que todos os dias autoriza e justifica a morte de dezenas de milhares de homens. “Por vias estranhas, o horror mobiliza-nos a atenção, e concede às nossas capacidades limitadas uma ressonância de artifício”, avisava George Steiner. Tendo morrido há cem anos, Kafka, o escritor que mais sofreu as premonições de toda a negação presunçosa, da arrogância pós-moderna disfarçada de fatuidade tolerante e despreocupada, ensinou que por vezes temos razão quando nos calamos, mais do que quando confrontamos com demasiada insistência os elementos medonhos que traçam o perfil de uma época. Pois o risco é acabarmos insolitamente atraídos por eles. Ao visitar uma exposição vienense dedicada ao judaísmo oriental, Claudio Magris estacou diante de uma fotografia que retratava um velho reparador de guarda-chuvas, “com o gorro bem enfiado na cabeça, a barba longa e os óculos no nariz”, afadigando-se com uma vareta e um fio. “Na fotografia escura, que devora nas sombras o traje sombrio do artífice, o rosto e as mãos do velho esplendem como num quadro de Rembrandt, numa sacralidade densa de respeito, que nenhuma ofensa poderá apagar”, nota o escritor triestino nesse magnificente mosaico que nos ofereceu sobre a cultura centro-europeia, “Danúbio”.
Há imagens que têm razão nesse sentido em que exprimem convictamente um silêncio, por vezes místico, outras irónico, tornam-se acolhedoras porque parecem transmitir-nos a confiança de uma religião desesperada. Como vinca Magris, “a violência poderá arrancar a barba ou tirar a vida ao reparador de guarda-chuvas, mas nada poderá roubar-lhe esta plenitude de sentido, esta segurança resoluta da pessoa que se exprime nos seus gestos tranquilos, no seu corpo”. Ele continua a descrição da imagem, e o tom compassivo das notas que se sucedem permitem ao ensaísta italiano ir para lá desse orgulho mitológico que um povo tem de si mesmo. É no carácter irrepetível de um homem que deve ser buscado o sentido daquilo que a cada momento se perde quando nos tornamos indiferentes diante dos efeitos do terror. “Por trás dos óculos encavalitados no nariz, os olhos sondam com paciência o obstinado ilhó da vareta estragada, mas continuam entretanto a transbordar maliciosos, com a afectuosa ironia de quem sabe que o mundo pode ser destruído entre a tarde e a manhã, mas que não devemos levar demasiado a sério as suas pequenas grandezas, as suas promessas e as suas ameaças, porque a Tora ensina-nos a não fazermos um ídolo de coisa nenhuma, nem sequer da palavra de Deus.”
Há algo de fabulosamente herético nesta suspensão da radiância do desastre, particularmente num momento como este em que todos parecem embriagados diante das hipóteses de nos vermos de novo submergidos pelo pesadelo da História. Os jornais em lugar de defenderem a textura do dia-a-dia, de buscarem esses relatos que obrigam a um exercício de maior paciência e modéstia, sabendo que somos incapazes de balanços definitivos, preferem embarcar nos delírios de visões abrangentes e que pretendem explicar tudo, entregando-nos ao efeito desolador dessa ficção absoluta que arrasta e submerge as pequenas histórias individuais, essa onda de olvido que as apaga da memória do mundo. Sendo fiel à sua tese de que a tarefa do escritor passa também por caminhar ao longo desse rio da História, refazendo essas correntes vencidas, repescando existências naufragadas, encontrando destroços enredados nas margens e resgatando-nos numa precária arca de Noé de papel, Magris prefere tocar obliquamente a questão judia, deixando-se comover com a fotografia onde um velho lhe lembra a figura do judeu “eternamente ileso”, como dizia Joseph Roth, esse mendigo imperturbável na sua realeza e que, com o seu cafetã sujo, volta a emergir após cada destruição, sem medo do faraó, do comandante do Lager, do fidalgote ou do chefe de repartição anti-semita, enquanto a sua incoercível vitalidade e a força inextinguível das suas feições familiares não param de lhe alimentar religiosamente a vitalidade. Isto recorda-nos o espanto de Steiner diante de perseverança do seu povo, o que o levou, no final da sua vida, a adoptar uma veemência escandalosa – apelando ao sentido grego da palavra, em que escândalo significa enormidade –, para justificar os motivos da inimizade ou ressentimento face aos judeus. Ele admitia que talvez os judeus durem há demasiado tempo. “Mais ninguém pode dizer, ‘o meu povo viveu no tempo de Temístocles ou de César’, mas a identidade étnica e histórica judaica perdura há 5.000 anos – é um arco temporal demasiado largo. Porquê esta longevidade? Há um outro povo na Terra – mas apenas um – que abarca também uma tradição multimilenar: os chineses. E, contudo, aqui, obviamente, há que ter em conta o enorme número deles.” De algum modo, Steiner notava que, nos seus actuais números, a população judia parecia escarnecer daqueles que procuraram por todos os meios, e com o engenho e a eficácia das suas indústrias, levá-la à extinção. “Neste momento, há mais judeus no planeta do que antes da Shoah. Não se deveria ter o direito de dizer uma coisa destas; é indecente, mas é verdade; há mais judeus a viver, a sobreviver, do que antes do mais poderoso genocídio da história da humanidade”, ressaltava ele numa entrevista concedida a Laure Adler. Num tom que balançava entre o cândido e uma subtil forma de gabarolice, muitas vezes Steiner parecia vingar-se dos carrascos que, ao longo dos séculos, falharam nos seus propósitos de eliminar os judeus da humanidade… “Para tornar o ar e a terra Judenrein, ‘limpos de judeus’ (um sugestivo epíteto que Hitler tomou de empréstimo aos austríacos). Para que cada homem, mulher, ou criança judias (mesmo as que não tinham ainda nascido) se tornasse cinza disseminada pelo vento.” E, no entanto, fracassaram, e isso coloca-nos perante essa questão tão instigante: Por que é que os judeus sobreviveram? A resposta naturalmente é tudo menos simples. Mas antes de nos sugerir alguns aspectos que determinam a diferença da condição judaica, que permitiu a este povo furtar-se à probabilidade da extinção, Steiner procura vincar ainda mais esta singularidade. “Os povos do antigo Egipto e da Suméria eram pródigos e inventivos. O exemplo e os feitos da antiga Grécia, sejam eles políticos, científicos, artísticos ou filosóficos, continuam a animar a cultura ocidental. Nunca houve civilização tão eficazmente disciplinada, tão obediente à lei como a da Roma republicana e imperial. Destas nações eminentes não subsistem quaisquer descendentes directos. As suas línguas são fantasmas para os eruditos. Os judeus existem: em Israel e na Diáspora. O hebraico é falado, escrito, adaptado à física nuclear, há pessoas que sonham em hebraico. Depois de mais de dois milénios de perseguições sistemáticas ou pontuais, de fugas para o exílio, de asfixia nos ghettos, depois do Holocausto, os judeus insistem em existir contra a norma e lógica da história que, mesmo sem o genocídio, é de mistura e assimilação graduais, miscigenação e diluição da identidade original. Existem contra os vorazes mandatos e medidas das tiranas, credos hostis, e movimentos de massas tais como os dos populares sedentos de sangue na cristandade medieval e dos pogromes da Rússia e da Europa de Leste.” Além de uma conjugação de constrangimentos externos e de isolamento, Steiner fala de um pacto de sobrevivência que nasce de uma concepção religiosa muito particular, em que um legado de um sofrimento fora do comum se alia a essa intimidade com o Deus de Abraão, Isaaac e Jacob, entendendo-se que há um elemento sacrificial, um preço muito alto a pagar pela eternidade, em que o sofrimento e a intimidade se mostram inseparáveis como as vozes de um diálogo. “Ainda que seja inconcebível para a razão e imaginação humanas, insuportável para a memória, Auschwitz é algo de efémero comparado com a Aliança, com a protecção de Deus ao seu povo perseguido”, escreve Steiner em “Errata: Revisões de Uma Vida”. E acrescenta: “Nem Hitler nem Nabucodonosor nem a Inquisição poderiam jamais levar a sua avante. Este axioma foi exultantemente proclamado pelos rabis à beira dos fornos crematórios.”
Mas todo esta retórica que se diria quase vingativa, na verdade, empalidece face àquela reflexão de Magris a partir de uma fotografia e da figura de um judeu cujo destino é desconhecido e assim se confunde com o de todo o seu povo, um homem calado, entregue ao seu discreto ofício, e que ilustra esse elemento de dignidade insubornável, essa força íntima que contrasta com a ruinosa deriva ocidental, porque se holocausto falhou nos seus esforços de extermínio daquele povo, nem por isso foi aplacado o apetite de devastação de uma sociedade secular, materialista, belicista, e a consequente indiferença e torpor intelectual de uma humanidade que já não procura transcender-se a si mesma, mas se lança numa crise existencial à medida que se abdica de uma relação de respeito com a vida e os elementos ao nosso redor. “Acabámos por nos tornar hóspedes vândalos, produzindo lixo, explorando e destruindo outras espécies e recursos”, nota Steiner. Estamos a transformar rapidamente este ambiente extraordinariamente belo e intrincadamente perfeito, e inclusive o espaço sideral, numa lixeira venenosa. Há caixotes de lixo na Lua”, exclama ele. E às tantas remete-nos para o monólogo do Louco em “A Gaia Ciência”, de Nietzsche, que ecoam o desastre da ausência divina que, hoje, parece ter significado um elemento decisivo da desolação que acompanha a crise do homem ocidental: “Onde está Deus?, gritou ele, já vos digo! Matámo-lo – vós e eu! Somos todos os seus assassinos! Mas como foi que fizemos isso? Como fomos capazes de esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja com que apagámos o horizonte inteiro? Que fizemos ao desamarrarmos esta terra do seu sol? Para onde irá agora a Terra? Para onde nos levará o seu movimento? Para longe de todos os sóis? Não nos teremos precipitado numa queda sem fim? Uma queda para trás, para o lado, para a frente, para toda a parte? Haverá ainda um em cima e um em baixo? Ou não erraremos através de um nada infinito? Não sentimos já o sopro do vazio? Não está mais frio? Não é sempre noite sem descanso e cada vez mais noite? Não teremos que acender as lanternas desde manhãzinha? Não ouviremos nada ainda do ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não nos chega o cheiro da putrefacção divina? – Também os deuses apodrecem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos! Como teremos consolação, nós, os assassinos dos assassinos? O que o mundo até então possuíra de mais sagrado e de mais forte perdeu o seu sangue com as nossas facas – quem nos limpará das mãos esse sangue?”
Do judeu na fotografia que capturou a atenção de Magris o que sabemos é que a sua tranquilidade reside na inocência crime, é uma figura arcaica, esse judeu que passa por nós “como o rei dos Schnorrer, dos mendigos-pedinchões obstinados e impassíveis: vagabundo e insistente, exposto às agressões e aos escárnios, mas sempre pronto a encolher os ombros com indiferença, sem pátria mas enraizado num livro e numa lei, entronizado na vida como um rei e capaz de se sentir por toda a parte em sua casa, comos e para ele o mundo inteiro fosse um bairro familiar, a rua da infância onde se fala o dialecto natal”. É neste ponto que aquela fotografia acaba por exemplificar para Magris o mesmo sinal de um idealismo arcaico, ridiculamente obsoleto face aos valores e à ideologia que triunfou nos nossos dias, mas precisamente por isso assinalando um contraste tão decisivo, pois enquanto nós, por incapacidade de nos relacionarmos como uma imagem transcendente da própria humanidade, condenamo-nos, ao passo que a figura do “judeu errante” se torna a imagem de qualquer ser que venha a sobreviver aos desastres e aos conflitos que se avizinham. De facto, é possível hoje defender que só são capazes de apontar para o futuro aqueles conceitos e ideias cuja força excede quaisquer armas, qualquer imperium, e que, por isso, como nos diz Steiner não precisam de passaportes. A fortaleza estende-se pelas nações ocidentais que gozaram os frutos de uma era da abundância em que a compulsão consumista se tornou um sinónimo de uma devastação das possibilidades de vida no planeta, e para esconder a sua culpa, o ódio e o medo agora emitem ou recusam os visas. Diante disto, e da escalada súbita dos conflitos no Médio Oriente, alguns judeus progressistas têm procurado recuperar a ideia de que o verdadeiro legado da religião e cultura judaicas sobreviverá do lado da Diáspora e até num confronto e denúncia dos abusos do Estado de Israel. Uma reportagem publicada no início do ano no The New York Times dava conta de uma série de manifestações entre a comunidade judia norte-americana que têm lançado um novo olhar sobre a questão desde o ataque do Hamas a Israel, em outubro do ano passado, e da subsequente campanha de bombardeamentos e invasão das forças israelitas em Gaza, que provocou já a morte de dezenas de milhares de palestinianos, tendo a coligação de extrema-direita no poder, entretanto, assumido de forma descarada o projecto de se eternizar nas zonas ocupadas, lançando ainda ataques no Iémen, no Líbano e no Irão, além das incursões que já vinha fazendo na Síria e no Iraque. Esta instabilidade regional, que poderá forçar um novo conflito mundial, não deixará de se saldar por um investimento ainda mais profundo nos ódios recíprocos, e isto tem forçado os judeus de todo o mundo a reconsiderar o que pensam sobre Israel e o papel central que desempenha na vida judaica. Como nos lembra a reportagem de Mark Tracy, algumas versões do diasporismo são seculares, remetendo para a União Judaica Trabalhista, um partido socialista que nasceu no Império Russo e esteve activo entre 1897 e 1920, na mesma altura e territórios onde nasceu o sionismo político, com vista a defender os direitos dos judeus nos impérios europeus da época. O slogan do Bund, como é geralmente conhecido, é “doikayt”, uma palavra iídiche que significa algo como “estar aqui agora”, o qual foi adoptado por alguns movimentos de judeus progressistas.
Steiner, que desde cedo assumiu frontalmente a sua postura anti-sionista, foi um dos mais eloquentes defensores de que é na Diáspora que se encontra hoje ainda aquele elemento verdadeiramente messiânico que este povo transporta. “As árevores têm raízes, os seres humanos têm pernas. Com as quais podem atravessar o arame farpado de fronteiras idiotas, com as quais podem visitar e viver como hóspedes entre o resto da humanidade”, diz-nos ele em “Errata”. E prossegue: “Existe uma simbologia fundamental nas lendas que abundam na Bíblia, mas também nas mitologias gregas ou outras, do estranho que ao sol-posto bate ao portão após a sua viagem. Trata-se frequentemente do toque de um deus ou de um emissário divino que põe à prova nossa capacidade de acolhimento. Quero acreditar que esses visitantes são os verdadeiros seres humanos em que devemos tentar tornar-nos se queremos sobreviver.”
No entender de Steiner o judeu na Diáspora é esse emissário, esse “hóspede” que continua a ser rejeitado em tantas portas fechadas. “É bem possível que o nosso chamamento seja o da intrusão, sugerindo aos outros homens e mulheres em geral que todos os seres humanos têm de aprender a viver como hóspedes na vida uns dos outros. Não há nenhuma sociedade, região, cidade ou aldeia que não possa ser melhorada. Do mesmo modo não há nenhuma que não possamos deixar quando nela se instala a injustiça ou a barbárie. A moralidade deve ter sempre as malas feitas”, vinca. E aqui entra o elemento de denúncia mais virulento e actual nesta tese, quando Steiner enfatiza como seria revoltante “se os milénios de revelações, de sacrifícios, se a agonia de Abraão e Isaac, desde o Monte Moriah a Auschwitz, tivesse como última consequência a fundação de um estado-nação, armado até aos dentes, uma terra de especulação financeira e de mafiosos, como todas as outras terras”. O aviso daquele que foi o mais destacado pensador judeu das últimas décadas assemelha-se a algo que nos últimos dias foi ecoado de forma ainda mais polémica por Giorgio Agamben. Steiner entende que para o judeu, a “normalidade” seria apenas um outro modo de desaparecimento, e incitava aqueles que se sentiam responsáveis pelo legado cultural judaico a reconhecer no enigma da sobrevivência deste povo a necessidade de dar resposta a um apelo maior, e que assim devia dirigir-se para o exílio, transmitindo esse fulgor de aprendizagem permanente e adaptação: “Agora temos de aprender a ser os hóspedes uns dos outros naquilo que resta desta terra sobrepovoada e degradada.”
Por sua vez, o filósofo italiano vai mais longe e, num texto com o provocador título “O fim do judaísmo”, considera que o sionismo
constitui uma dupla negação da realidade histórica do judaísmo, uma vez que transfere os judeus para o Estado-nação dos cristãos, representando assim o ápice do processo de assimilação que, a partir do fim do século XVIII, foi progressivamente apagando a identidade judaica. Steiner reforçaria esta tese acrescentando que esse é o preceito universal dos profetas, de Isaías, do Deutero-Isaías e de Jeremias na sua antiga querela com os reis e sacerdotes da nação fixa, do estado-fortaleza. Mas este autor que gostava de se considerar um mestre de leitura, e que entendia que ser judeu significa pertencer ao povo do livro, essa comunidade que reforça os seus laços através do estudo dos textos, da vontade de adquirir novos conhecimentos e aprofundar o seu saber sobre novas culturas e realidades, se Steiner apenas admite que o judaísmo deverá sobreviver à ruína de Israel, Agamben entende que as tensões entre Israel e a Diáspora deverão agudizar-se, de outro modo o esforço de justificar a implacável campanha belicista para garantir a existência de Israel irá significar a traição da consciência judaica. Para o italiano a ideologia sionista impõe “a negação da Galut, isto é, do exílio como princípio comum a todas as formas históricas do judaísmo como nós o conhecemos”. Em linha com aquilo que nos diz Steiner, ele reforça que as premissas da concepção do exílio são anteriores à destruição do Segundo Templo e já estão presentes na literatura bíblica. “O exílio é a própria forma da existência dos judeus na terra e toda a tradição judaica, da Mishná ao Talmud, da arquitectura da sinagoga à memória dos eventos bíblicos, foi concebida e vivida na perspectiva do exílio. Para um judeu ortodoxo, também os judeus que vivem no estado de Israel estão em exílio. E o Estado, que os judeus esperavam com o advento do Messias, segundo a Torá não tem nada a ver com um estado nacional moderno, tanto que no seu centro estão, justamente, a reconstrução do Templo e a restauração dos sacrifícios, acerca dos quais o estado de Israel não quer nem ouvir falar. E é importante não nos esquecermos de que o exílio, segundo o Judaísmo, não é apenas a condição dos judeus, mas diz respeito à condição faltante do mundo na sua integridade.”
O sionismo, na sua forma mais doutrinária, vira costas ao exílio. Shlilat ha-golah, que em hebraico significa “negação do exílio”, foi um dos primeiros slogans sionistas. Para os seus adeptos, um judeu só pode realizar-se totalmente se viver em Israel, e insistem que a saudade de Israel é um aspecto incontornável dos textos judaicos. Ora, Steiner entende que é a própria condição de um povo que escolhe entregar-se à transitoriedade, como sem-abrigo, nessa “camaradagem com o vento”, que faz dos judeus, segundo o termo nazi, Luftmensch, ou seja, criaturas do ar, sem raízes, é essa intuição do peregrino que inspira uma desconfiança visceral e está na base do anti-semitismo. “Estaline e Hitler cultivaram um desdém homicida pelo glorioso substantivo ‘cosmopolita’, com a sua promessa do inalienável.” Já “No Castelo do Barba Azul”, adianta que “só aquele que perde a sua vida, no sentido mais pleno da negação de si, descobrirá a vida”. “O reino destina-se aos nus, aos que voluntariamente se despojaram de toda a posse, de todo o egoísmo defensivo.”
Claramente as teses do diasporismo estão mais próximas deste compromisso ético radical, defendendo que os judeus devem abraçar a marginalidade e um certo afastamento de Israel, o país, e talvez mesmo de Israel, o lugar. “Segundo alguns cabalistas, dentre os quais Isaac Luria, o exílio define a própria situação da divindade, que criou o mundo exilando-se de si mesma, e tal exílio durará até ao advento do Tiqqun, isto é, da restauração da ordem originária”, adianta Agamben. “É essa aceitação sem reservas do exílio, com a recusa que lhe é própria de qualquer forma presente de estatalidade, que funda a superioridade dos judeus em relação às religiões e aos povos que se comprometeram com o Estado. Os judeus são, em conjunto com os ciganos, o único povo que recusou a forma estado, não conduziu guerras e jamais se maculou com o sangue de outros povos.”
Ao atrever-se a dar-nos uma definição do que significa ser judeu, Steiner insiste na ideia desse ser que vive para o estudo, alguém comprometido com a aprendizagem, e que, nessa medida de afasta de toda a superstição, de todos os argumentos irracionais. Isto é crucial pois marca um contraste decisivo num momento em que o mundo apenas se rende ao relativismo da pós-verdade porque os povos abdicam das suas culturas, ficando cada vez mais susceptíveis a um ambiente mediático que alimenta os seus preconceitos, medos irracionais, tornando-se cada vez mais sádico, cada vez mais provinciano, nacionalista, chauvinista. “Hoje, no Ocidente, parece haver uma proporção de três astrólogos para cada cientista. A superstição, o irracional, estão a ganhar novamente terreno. Estamos a viver numa sociedade cada vez mais kitsch, vulgar e brutal.” Ser judeu é, assim, “recusar-se a recorrer a astrólogos para conhecer o seu destino, é ter uma visão intelectual, moral, espiritual; acima de tudo, é recusar humilhar ou torturar outro ser humano; é recusar que outro sofra com a nossa existência”, disse ele na entrevista acima referida. Nessa conversa em que demonstra uma lucidez exaltante, Steiner admite que ao exprimir as suas convicções anti-sionistas, receava o perigo das suas palavras seres distorcidas, algo que nos últimos tem ocorrido com muitos dos judeus que, sem sequer porem em causa o Estado de Israel, assumem posições críticas contra a ideologia ultranacionalista dos membros do executivo que forçou Benjamin Netanyahu a extremar tantas das posições que defendera em anteriores mandatos. “Durante vários milhares de anos, aproximadamente desde a queda do Primeiro Templo em Jerusalém, os judeus não tinham sequer meios para maltratar, torturar ou expropriar fosse quem fosse. Para mim, esta é a maior aristocracia que alguma vez existiu. Quando me apresentam um duque inglês, digo para mim mesmo: ‘A maior nobreza é ter pertencido a um povo que nunca humilhou outro povo’. Um povo que nunca torturou outro. Mas hoje, Israel vê-se necessariamente (sublinho esta palavra, e repeti-la-ia 20 vezes se pudesse), necessariamente, inevitavelmente, inelutavelmente, obrigado a matar e torturar para sobreviver. Assim, Israel deve comportar-se como o resto da humanidade dita normal. Ora, eu sou um snobe ético convicto, sou completamente arrogante do ponto de vista ético; ao tornarem-se um povo como os outros, os israelitas perderam a nobreza que eu lhes atribuía.”
Neste ponto é evidente como Steiner e Agamben estão a dizer-nos a mesma coisa: que o sionismo trai a própria essência do judaísmo. E Agamben termina com uma nota de desoladora ironia: “Não deveríamos espantar-nos pelo facto de esse afastamento ter produzido outro exílio, o dos palestinianos, levando o estado de Israel a identificar-se com as formas mais extremas e impiedosas do Estado-nação moderno. A tenaz reivindicação da história, da qual, segundo os sionistas, a diáspora teria excluído os judeus, vai na mesma direcção. Mas isto pode significar que o judaísmo, que não tinha morrido em Auschwitz, talvez hoje conheça o seu fim.”