Filha de dois professores, Maria Francisca Gama cresceu rodeada de livros e histórias que despertaram, desde cedo, a sua paixão pela literatura. Os pais foram os grandes impulsionadores do seu gosto pela leitura, enchendo a casa de livros e levando-a a bibliotecas e livrarias desde pequena. A Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, em Leiria – de onde é natural –, em particular, foi palco de muitas horas de encanto e histórias dramatizadas a que a jovem assistia ainda em criança. Com essa base literária sólida, não demorou muito até que Maria Francisca começasse a criar as suas próprias histórias.
Durante a adolescência, não mantinha apenas o hábito da leitura, mas também começou a usar a escrita como um meio de entender e lidar com as emoções que surgiam, principalmente as mais difíceis. «A partir dos 13, 14 anos, descobri a escrita como uma forma de lidar com as coisas que me entristeciam», conta em entrevista à LUZ. Foi nesse período que criou o blog Coisas do Coração, onde partilhava desabafos, reflexões e histórias pessoais. Não só desgostos amorosos daquela altura, mas também textos endereçados ao pai que faleceu quando tinha 16 anos. Deste modo, o espaço virtual tornou-se um ponto de encontro entre as suas emoções e os leitores, cuja opinião, naquela época, teve um impacto importante na sua autoconfiança. «A opinião dos outros era muito importante para mim, e o blog trouxe-me a validação de que necessitava», relembra. Ainda muito jovem, lançou o seu primeiro livro, Em Troca de Nada, e já tinha claro que a escrita seria o centro da sua vida.
«Sempre quis ser escritora», afirma, apesar de também ter considerado outras profissões. Na adolescência, a autora sonhou em conciliar a escrita com a carreira de juíza ou advogada, o que a levou a estudar Direito. «Gostei muito do curso e acho que ele foi importante para o meu desenvolvimento, tanto como pessoa quanto como escritora», explica. O curso trouxe-lhe uma visão mais objetiva e crua do mundo, algo que se reflete no estilo direto e despojado das suas obras. No entanto, a prática da advocacia acabou por revelar-se incompatível com a dedicação que a escrita exigia e, por isso, Maria Francisca optou por seguir exclusivamente a literatura.
Com o lançamento d’A Cicatriz, em fevereiro, Maria Francisca alcançou um novo patamar na sua carreira, ganhando reconhecimento não apenas em Portugal, mas também noutros países de língua portuguesa. O livro, que aborda temas sensíveis como a violência sexual e as complexidades emocionais que surgem após um trauma, tocou profundamente os seus leitores. «Eu nunca escrevi com a expectativa de ter tantos leitores, muito menos esperava que um livro como A Cicatriz teria este impacto», admite. Para a jovem, o objetivo ao escrever nunca foi intencionalmente levantar bandeiras ou dar voz a quem sofre, mas criar uma história que fosse sincera. «Foi uma história que surgiu e eu escrevi sem pensar em mais nada. Só depois, com o feedback dos leitores, percebi que tinha escrito algo importante».
Muitas mulheres que já enfrentaram situações semelhantes às da protagonista do livro sentiram-se representadas na narrativa e encontraram força na identificação com a personagem, algo que a autora descreve como um dos momentos mais emocionantes da sua carreira. «Recebo muitas mensagens de mulheres que passaram por situações semelhantes. É algo que me emociona profundamente», frisa. Por outro lado, existiu também impacto direto nos leitores masculinos e essa foi uma das grandes surpresas que Maria Francisca teve. Conta que muitos homens lhe escreveram, partilhando que passaram a compreender melhor as preocupações das companheiras, amigas ou mães. Além disso, muitos relataram que se identificaram com o papel do protagonista masculino do livro, que também é vítima do peso patriarcal que a sociedade impõe ao homem como protetor, muitas vezes ignorando o seu próprio medo e sofrimento.
A escolha de não nomear as personagens principais em A Cicatriz foi deliberada, com o objetivo de tornar a narrativa mais universal e acessível. «Queria que os leitores pudessem colocar-se no lugar delas, sentir a história como algo que podia acontecer a qualquer pessoa», explica. A ausência de nomes permitiu uma aproximação emocional ainda maior entre o texto e o leitor, facilitando uma empatia que se sente no impacto causado pela obra.
A autora tem um relacionamento próximo com as emoções que inspiram as suas histórias. Admite que a tristeza tem sido um motor criativo mais potente do que a alegria ao longo da sua carreira. No entanto, também reconhece que este não é um estado emocional sustentável. «É importante para mim encontrar outras fontes de inspiração, porque quero continuar a escrever por muito tempo, e não acho saudável depender sempre da tristeza», reflete.
Nas suas obras, Maria Francisca explora freuentemente as relações humanas, tanto na sua beleza quanto na sua fragilidade. No caso de A Cicatriz, o romance aborda não apenas um trauma individual, mas também a forma como um relacionamento amoroso pode ser abalado por uma tragédia externa. O questionamento sobre o «para sempre» no amor é um tema que intrigou a autora durante a escrita, especialmente porque estava a preparar o seu casamento na altura. «Escrevi sobre o medo de como uma relação pode ou não sobreviver a algo tão devastador», diz.
Aos 27 anos, a autora sabe que está apenas no início da sua jornada literária, mas carrega já a maturidade de quem entende o peso e a responsabilidade das suas palavras. Enquanto ainda lida com o sucesso de A Cicatriz e as conversas constantes com os leitores que lhe escrevem, já se prepara para novas histórias e novos desafios. «A personagem principal d’A Cicatriz ainda não me largou completamente mas sei que, mais cedo ou mais tarde, dará espaço a outras personagens que já começam a ganhar vida dentro de mim».
O sucesso da autora e d’A Cicatriz também está fortemente ligado ao papel que as redes sociais desempenharam na disseminação da obra. Plataformas como TikTok e o Instagram ajudaram a popularizar o livro e a torná-lo um dos mais falados entre leitores de todas as idades. A escritora reconhece que as redes sociais foram fundamentais para que o livro chegasse a um público tão vasto e diversificado, revelando que todos os dias é marcada em «dezenas de TikToks, stories no Instagram, publicações no Facebook, vídeos no YouTube…».
Apesar do entusiasmo pelo alcance digital, a autora reconhece que a fama nas redes sociais também traz críticas. Algumas delas são difíceis, especialmente quando ocorrem em espaços públicos onde o objetivo parece «ser-se visto» e não dialogar diretamente com a autora. Mesmo assim, mantém uma visão positiva, reconhecendo que «nem todos podem gostar» e que isso faz parte do processo criativo. A jovem autora, que já está a trabalhar no próximo livro, não pretende repetir a fórmula de sucesso d’A Cicatriz. Sente necessidade de se desafiar e criar algo «inevitavelmente diferente», focando-se na história em si, sem se deixar influenciar pela expectativa dos leitores.
Maria Francisca Gama revela que o novo livro é inspirado num caso de 2016, mas mantém o mistério em torno da narrativa, prometendo uma abordagem nova e distinta das suas obras anteriores. A inclusão da autora na lista ‘30 under 30’ da Forbes foi outro marco importante no seu percurso. Maria Francisca reflete que, até então, nenhum escritor português havia sido reconhecido pela publicação nesta lista. Para ela, essa visibilidade é essencial para colocar a literatura no centro de discussões mais amplas sobre cultura e inovação, além de promover a importância da leitura no mundo contemporâneo. Esse reconhecimento foi especialmente significativo por permitir-lhe «falar sobre como é ser escritora em Portugal», numa plataforma que a conectou a pessoas influentes em várias áreas.
Para além destas conquistas, não esquece uma recente: a confirmação do impacto real que a sua obra teve na vida dos leitores. A autora conta, com emoção, o testemunho de uma mulher que, após ler A Cicatriz, decidiu finalmente procurar ajuda psicológica para lidar com traumas passados. «Esse foi, sem dúvida, o momento mais especial da minha carreira», afirma, ressaltando a importância de falar sobre a dor e procurar apoio. Para ela, o final d’A Cicatriz, embora trágico, serve «como um alerta para que as pessoas não se isolem e entendam a importância da partilha e da procura de ajuda em momentos de sofrimento».
Com uma narrativa potente e acessível, a autora – que também publicou A Profeta, em 2022 e Madalena, em 2015 – não só conquistou um público abrangente, mas também trouxe para a mesa questões cruciais sobre a violência de género, a sociedade patriarcal e a importância da empatia. Ao falar sobre os desafios de ser mulher, reforça a necessidade de dialogar e tentar ter apoio, desafiando as expectativas da invencibilidade feminina que muitas vezes a sociedade impõe. Com uma carreira literária ainda no início, mas já marcada por grande sucesso, a jovem está determinada a continuar a inovar, sempre fiel à sua voz criativa e ao compromisso de contar histórias que toquem os leitores.
O futuro de Maria Francisca parece promissor e o seu compromisso com a verdade emocional das narrativas continuará a ser uma força motriz. Não tem receio de expor vulnerabilidades nem de criar histórias que incomodem ou toquem em pontos sensíveis da sociedade, desde que a honestidade e a empatia permaneçam no centro do seu trabalho