Era uma vez um orçamento. Era um livro pesado e maçudo, cheio de números e gráficos que ninguém lia. O orçamento era importante, sisudo e formal como são todas as coisas importantes. Mas os aldeões não queriam saber dele: não sabiam fazer contas, construir gráficos e as crianças usavam-no para desenhar nas folhas brancas que separavam os entediantes capítulos. O orçamento ambicionava ter a importância de tempos remotos, dos tempos em que os animais falavam. Queria que o lessem e gostassem dele. O seu sonho era que o abrissem e respeitassem, que o citassem e conversassem sobre ele. Mas ano após ano, o orçamento tornou-se mais desinteressante, irrelevante e desprezado. Era sempre arrumado em prateleiras onde acumulava pó e onde as aranhas se entretinham a experimentar teias novas. Nada lhe corria bem e até deixou de ser livro para passar a ser uma pen sem peso ou dignidade.
Mas um dia o orçamento voltou a ter importância. Dependia dele que os meninos pudessem voltar a brincar, que a terra produzisse alimentos, as galinhas pusessem ovos e os anões extraíssem minerais dos túneis escuros e labirínticos. Sem ele, anunciou o velhinho da aldeia que todos desconfiavam ser feiticeiro, os pássaros deixarão de cantar, os peixes não mais saltitarão nas margens do riacho e uma nuvem sombria cobrirá as montanhas trazendo a escuridão e escondendo até as estrelas mais brilhantes. O sol ficará coberto e as árvores perderão todas as folhas, dizia o mago. Era preciso encontrar o orçamento, fazer novas contas, desenhar gráficos, escrever números e tirá-lo da pen. Pior: era preciso que todos concordassem que durante pelo menos duas épocas de colheitas o orçamento sairia da prateleira empoeirada e seria exposto no meio da praça, fechado numa vitrina forrada a ouro para que todos o pudessem admirar.
Os aldeões assustaram-se com tal profecia e correram para suas casas fechando as janelas e as portas. A aldeia ficou silenciosa. Ninguém sabia fazer contas e muito menos gráficos. Mas a fome já estava a chegar e os dias passaram a noites. A discórdia, as zangas, as lutas entre uns e outros eram constantes. Então, os aldeões resolveram reunir-se no celeiro deserto de cereais para debater se deveriam ou não cumprir a profecia do mago. Discutiram durante meses, enquanto os mais novos fugiam para as aldeias vizinhas em busca de terras para lavrarem e de riachos com vida. Os anciões não se entendiam: uns queriam um orçamento com mais gráficos, outros com mais números, os incrédulos diziam que ele era maldito e outros, mais quizilentos, ainda reclamavam que não se devia despertar o orçamento pois do caos nasceria uma nova alvorada. Lutaram, gritaram, reclamaram e o orçamento continuou fechado, sem honra nem glória.
O mago recolhido na sua tenda, não mais se fez ouvir. Os anos passaram e as discussões continuaram sem fim. O orçamento, esse, era apenas uma pen cada vez mais velha e gasta. Até que as nuvens chegaram, os campos secaram e os animais morreram. Mas não foi por causa do orçamento, ou da profecia maldita. Tudo aconteceu porque enquanto os aldeões lutavam entre si ninguém trabalhou os campos ou alimentou os animais. Ainda hoje se debate o orçamento naquela aldeia esquecida povoada por pobres e velhos.