Nuno Jacinto: “Até parece que os médicos têm vergonha de falar do salário base”

Nuno Jacinto alerta para o perigo de subalternização dos cuidados primários na nova estrutura do SNS. Reclama que os médicos de família nunca foram ouvidos e que ligar prescrição de exames diretamente à remuneração dos profissionais é ‘perverso’.

Como avalia o impacto da reestruturação do SNS e a criação das ULS nos cuidados de saúde primários?                     

É um impacto a vários níveis. Para já, obriga-nos a repensar o nosso funcionamento, na forma como nos relacionamos com as outras entidades e os outros níveis de cuidados. Se em termos de princípios é quase unânime a melhoria de gestão de recursos, de integração de cuidados, de racionalização e da comunicação, a verdade é que, na prática, há o perigo de uma absorção dos cuidados primários pelos cuidados hospitalares. Com as 39 ULS isto está a acontecer de forma diferente, até porque elas são necessariamente diferentes. Não há aqui uma resposta igual para todos. Não podemos dizer que está a correr bem ou mal de um modo generalizado. É uma realidade muito local e é difícil traçar um panorama nacional.

Mas há subalternização dos cuidados de saúde primários?

Há esse risco e não nasce do nada mas de experiências prévias. Um exemplo prático: se os médicos de família decidem enviar um doente para o serviço de urgência, têm de ter essa capacidade e o percurso deve ser fluído. Não pode haver uma espécie de triagem ou de pré-autorização de quem quer que seja. Da mesma forma que a reparação ou substituição do equipamento pesado hospitalar, não podem ser feitos à conta do sacrifício do orçamento destinado aos cuidados de saúde primários. Esta avaliação faz-se no dia-a-dia. Obviamente que existe o risco de subalternização. Os antigos ACES foram agregados aos hospitais e são os cuidados primários que têm de fazer um grande esforço de adaptação a uma grande estrutura que na base não era a deles.

Não há ainda tempo suficiente para perceber se a reestruturação foi para melhor ou pior, é isso?

É preciso mais tempo. Concordemos ou não com o modelo, não podemos estar sempre a mudar tudo. O modelo das ULS tem potencialidades, poderá não ser o modelo ideal em muitas situações. Se ao fim de três ou cinco anos não chegarmos aos resultados que queríamos, temos de adaptá-lo. Mas destruir só por destruir, não faz sentido.

O procedimento concursal dos recém-especialista não correu bem. Foi por se optar por um modelo centralizado e nas ULS?

Foi um erro e o próprio Ministério já assumiu isso. Ao distribuirmos este concurso por 39 instituições e criarmos 39 concursos paralelos, temos muitos colegas a candidatarem-se a vários locais. Além de se multiplicar o trabalho, porque obriga a mais processos de seleção. Acreditar que estas 39 instituições iam lançar os concursos todas ao mesmo tempo, de forma célere e conclui-los todos ao mesmo tempo, era utópico, impossível.

Qual seria a melhor solução?

O modelo de contratação a nível nacional é mais fácil, mais rápido e até mais transparente, e permite um processo de seleção mais tranquilo. Mas tem de haver uma forma de contratar diretamente. Por exemplo, nas USF em que já há determinado colega convidado e não se quer colocar a sua vaga a concurso, não é justo que se o obrigue a entrar no concurso nacional, a escolher uma vaga e ocupá-la, sabendo de antemão que não vai lá ficar. Devia existir um procedimento de vagas que são colocadas por um concurso nacional e a possibilidade de uma contratação mais célere, mais ágil e mais direta, que pode ser feita pelas USF que já escolheram um determinado profissional.

Os concursos, no entanto, vão ficando desertos.

É a velha questão. Os concurso ficam desertos porque ainda não arranjámos forma de o SNS ser atrativo para reter os médicos de família. Sobretudo os colegas mais novos. O problema central do SNS é a carência de recursos humanos. Podemos andar à volta das instalações, equipamentos o que quiser, mas aquilo com que temos de lidar são os recursos humanos. Os cuidados primários não são exceção e os médicos de família muito menos. Temos que arranjar a forma de atrair estes profissionais e até agora nunca o conseguimos fazer. Quando fizemos a reforma, há quase 20 anos, avançámos um pouco nesse sentido, mas depois falhámos em muitas coisas.

Tais como?

Falhámos na remuneração, que, não sendo a única questão, é obviamente essencial. Andamos à volta do trabalho extra e dos suplementos, mas esquecemos o salário base. Às vezes até parece que nós, médicos, temos vergonha de falar disto. Mas não é só atirar dinheiro para cima do problema. A remuneração é essencial mas depois falta tudo o resto.

Tudo o resto é o quê?

São as carreiras. O SNS devia diferenciar-se por ter carreiras médicas com progressão baseada no mérito, com a progressão real, com diferenciação entre os vários graus e categorias. Aquilo que temos são processos muito lentos. Também a autonomia das equipas, nomeadamente na gestão da capacidade de resposta, gestão de horários e permitir às pessoas conciliarem a sua vida profissional com outros atividades e a vida pessoal. Os colegas mais novos valorizam muito isto. Por fim, melhorar as condições de trabalho. Vão sempre dizer não há uma solução imediata. Pois não, mas se não fizermos isto hoje vamos estar ano após ano a discutir o mesmo tema. Queremos médicos de família no SNS de um dia para o outro? Não há. Quem prometer que ao final de meses teremos todos os médicos de família não está a ser sério. Isso não vai acontecer.

Mas há sempre medidas emergentes que se podem tomar.

Sim. Se conseguirmos mexer na remuneração, nas carreiras e na autonomia, só nestas três áreas, já melhorávamos muito. Se iria ter impacto já no próximo concurso, não sei dizer, mas teria certamente impacto de forma rápida.

A falta de médicos de família não poderia ser coberta por serviços privados?

Recorrer ao setor privado não será errado para resolver a falta de médicos de família, desde que este seguimento seja feito efetivamente por médicos de famílias, trabalhem eles no setor social ou privado. O que não podemos é tentar sub-repticiamente substituir este conceito de médico assistente e depois ter no privado um seguimento por um médico assistente que não é especialista em medicina geral e familiar. É também preciso saber se é possível. Os colegas que estão no privado não estão de braços cruzados, estão a trabalhar, têm as suas funções. Tem o privado capacidade de resposta para isto?

Como vê a proposta do Governo de reduzir o peso das prescrições dos medicamentos e dos exames na avaliação das USF-B?

Sempre achámos que ligar a prescrição de exames diretamente à remuneração dos profissionais era um erro porque cria complicações e, portanto, tudo o que possa ser feito para corrigir essa situação é positivo. Agora, temos que perceber quais são os indicadores, os intervalos e quais são os valores de referência. Idealmente não nos parece correto que a ponderação individual de um médico esteja diretamente ligada àquilo que é prescrito pelo próprio. Não faz sentido. Isto gera conflitos éticos, legais, financeiros que um médico não deveria ter de gerir. Não havendo esta correção total, obviamente que diminuir a ponderação é positivo, mas é necessário ajustar aqui os intervalos para que eles correspondam às boas práticas, aquilo que é a realidade e não apenas a um critério economicista.

Como seria isso possível?

Têm de existir fatores de correção, e isso é mensurável, que nos permitem perceber como aumenta a carga de doença e como aumentar em função dos medicamentos, por exemplo. Não é justo dizer que o SNS comparticipa os medicamentos todos, que há medicamentos fantásticos, por exemplo, na área da diabetes, mas são muito caros. Se eu passar esses medicamentos a todos os diabéticos da minha lista com indicação , vou exceder o indicador. Ou seja, cumpro a melhor prática e depois sou penalizado porque o preço do fármaco é muito caro? Mas o preço do fármaco não depende de mim. Isto é muito perverso. Obviamente que as equipas não alinhando com isto, prejudicam-se: recebem menos, desanimam, trabalham com menos empenho e têm menos vontade de permanecer no SNS. Nós queremos valorizar as pessoas que lá estão e desta forma estamos a fazer o contrário.

Denunciou há uns tempos que o plano de emergência para a saúde não tinha qualquer representante dos médicos de família.

Só fomos ouvidos numa reunião organizada pela Ordem dos Médicos, portanto, não tivemos nenhuma influência no plano de emergência e continuamos sem ter. Foi reconhecido como tendo sido um erro mas não foi corrigido. Há agora uma comissão para avaliar o impacto das ULS universitárias e, novamente, não há ninguém de medicina geral ou familiar neste grupo de trabalho. Só pessoas do lado hospitalar. Não faz sentido: a diferença entre as ULS universitárias e os centros hospitalares universitários é que passaram a ter os cuidados de saúde primários integrados. Vamos avaliar o impacto sem ouvir os cuidados primários, nenhum médico de família? Era bom perguntar à tutela o porquê deste ‘lapso’.