Publicado em 1964-65, O Gesto e a Palavra é um estudo clássico sobre a Pré-História e a evolução do Homem, uma daquelas obras fundamentais obrigatórias em qualquer biblioteca de ciências sociais que se preze. Queria lê-lo desde os meus tempos de estudante universitário, mas acabei por só o fazer volvidas mais de duas décadas, tendo terminado o primeiro volume (‘Técnica e Linguagem’) em agosto de 2019.
As obras em mais de um volume comportam esse problema: ou lhes dedicamos uma atenção exclusiva e as ‘atacamos’ do princípio ao fim ou, se gostamos de novidade e de variar – como é o meu caso –, podemos facilmente ler o primeiro volume e ficar com o(s) seguinte(s) pendurado(s) durante bastante tempo. Nestes cinco anos que permearam entre um e outro, juntei mais de cem títulos à minha conta pessoal, o que contribuiu para que iniciasse a leitura do segundo volume já com uma ideia bastante difusa do conteúdo do anterior.
Recordava-me vagamente das considerações sobre a evolução do cérebro humano e das ferramentas, algumas bastante técnicas, mas ainda assim sempre interessantes. A ideia algo difusa que me ficou foi talvez agravada pelo facto insólito de faltarem ao meu exemplar 16 páginas, aparentemente resultado de um erro de impressão. Acabei por encontrá-las na internet, podendo dar a leitura do livro por concluída.
Ainda não mencionei – propositadamente – quem foi do autor desta obra fundamental. André Leroi-Gourhan nasceu em 1911 em Paris, sendo o seu nome de baptismo uma estranha acumulação de nomes próprios: André George Léandre Adolphe Leroi.
Órfão desde muito pequeno, teve uma infância pobre e difícil, encontrando alívio para o seu infortúnio num volume que a madrinha lhe ofereceu, Os Homens fósseis, bem como nas galerias do Museu Nacional de História Natural de Paris. Abandonou a escola aos 14 anos, acabando por regressar pela mão de um professor que viu nele um rapaz promissor.
E agora começa a parte surpreendente – se tivermos em conta que Leroi-Gourhan se tornou uma autoridade absoluta nas questões da Pré-História. Entrou para a Escola de Línguas Orientais e os seus primeiros diplomas foram em russo e chinês (1931 e 1933, respetivamente). Em paralelo, frequentou um curso de etnologia dado pelo ilustre sociólogo Marcel Mauss, com quem participaria na reconversão do Museu de Etnografia do Trocadéro em Museu do Homem.
Mas a ‘deriva oriental’ ainda não tinha terminado.
Um ano depois de se casar, partiu com a mulher, Arlette, para uma missão etnográfica no Japão, dando aulas em Quioto e fazendo estudos sobre os hainus de Hokaido. Este povo, em que os homens caçavam ursos e baleias e as mulheres usavam tatuagens à laia de enormes bigodes, constituía um enigma para os antropólogos.
André e Arlette regressaram a França em 1939, onde ele defenderia a sua tese de doutoramento, sobre ‘A Arqueologia do Pacífico Norte’, em 1944. Nesses anos, com o país mergulhado na guerra, esteve colocado nos museus Guimet e Cernuschi, ambos dedicados às artes do Oriente, sobrando-lhe ainda tempo para participar nas atividades da resistência contra os nazis, o que lhe valeria uma Legião de Honra.
Fez um segundo doutoramento, dirigiu escavações com métodos pioneiros, foi professor na Sorbonne e, por fim, no Collège de France, o topo de qualquer carreira académica. Da sua extensa bibliografia, tanto quanto sei, estão publicados em Portugal Os caçadores da Pré-História, As religiões da Pré-História e os dois dípticos O Homem e a Matéria e O Gesto e a Palavra. É sobre o segundo volume deste último que terei o gosto de aqui escrever na próxima semana.