Katy Hessel: “Não digo em lado nenhum que as obras feitas por mulheres são melhores. Isto não é uma competição”

Cansada de ver os museus e galerias só exporem obras de arte feitas por homens, Katy Hessel resolveu pôr mãos à obra. Abriu uma conta no Instagram dedicada às artistas mulheres e escreveu um livro com o seu quê de polémico que acaba de ser publicado em Portugal.

Como assim? Escrever uma história da arte sem Leonardo da Vinci nem Miguel Ângelo, sem Rembrandt nem Velázquez, sem Monet, Van Gogh ou Picasso?   

À primeira vista pareceria uma insensatez ou, no mínimo, um projeto condenado ao fracasso. Na realidade, tornou-se o contrário. Ao retirar da equação os grandes ‘monstros’ da arte, abriu-se espaço para figuras fascinantes que até aqui tinham ficado na sombra e merecem ser conhecidas, como a aristocrata italiana Sofonisba Anguissola, a francesa Elisabeth Vigée Le Brun, próxima da desditosa Maria Antonieta, ou a japonesa Katusushika Oi.

A História da Arte Sem Homens (ed. Objectiva), de Katy Hessel, assume-se como uma espécie de contraponto à canónica A História da Arte, de Ernst Gombrich, obra publicada em 1950 e que não incluía qualquer mulher artista. O livro de Gombrich obteve – com toda a justiça – um retumbante sucesso, que permanece até hoje. O de Katy Hessel também.

Aos 30 anos, a historiadora da arte nada e criada em Londres já atingiu uma notoriedade com que a esmagadora maioria dos seus pares nem sonharia. A sua conta no Instagram (@thegreatwomenartists) tem mais de 425 mil seguidores e o seu livro não pára de receber comentários elogiosos.

Conversámos com a autora numa passagem rápida por Lisboa, em que, além de falar com jornalistas, teve tempo apenas para uma visita ao renovado Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian.

A primeira vez que ouvi falar do seu livro achei a ideia um pouco chocante. E fiquei a pensar: ‘Será isto uma declaração de guerra?’.

De modo algum. Quis simplesmente criar uma coisa diferente, que pudesse acrescentar algo de novo à história da arte.

Quando se deu conta deste espaço em branco, deste silêncio que se abateu sobre as mulheres artistas? Logo no início do seu livro fala dessa espécie de revelação que teve numa feira de arte, em 2015, onde não havia obras de mulheres.

Exatamente.

E antes? Quando estudou História da Arte não se apercebeu desse silêncio?

Nem por isso. Foi depois de me licenciar que andava a estudar a obra de Alice Neel, uma fantástica pintora americana de pessoas que trabalhou entre as décadas de 1930 e 1980. E apercebi-me de que ela só obteve reconhecimento no fim da vida. Depois comecei a notar uma espécie de padrão: as mulheres artistas só eram reconhecidas quase no fim da vida ou mesmo já depois de viverem. Quando estava nessa feira de arte contemporânea, de repente tive uma espécie de abanão e pensei: ‘Meu Deus, se calhar não consigo nomear nem vinte mulheres artistas’. E achei que isso era um problema meu, porque podemos sempre instruir-nos. E foi isso que fiz. Fui para casa e abri a minha conta no Instagram [@thegreatwomenartists] para aprender e ter alguma consistência – porque a consistência é muito importante quando se trata de lutar pela mudança. Não imaginava que a conta fosse crescer desta maneira. É muito bom ver que tanta gente em todo o mundo está ávida por saber mais sobre estes temas e estas questões.

E quando começou à procura foi fácil ou difícil encontrar informação sobre estas artistas? É que habitualmente não têm lugar nos livros de história da arte.

Foi difícil e fácil ao mesmo tempo. Na esfera contemporânea foi muito mais fácil, mas quanto mais recuava mais difícil se tornava. Mas é interessante assinalar que nos últimos cinco anos, dez no máximo, houve imenso trabalho especialmente em relação a artistas históricas, exposições por todo o mundo, por exemplo sobre Bolonha nos séculos XVI e XVII, Sofonisba Anguissola, Lavinia Fontana ou Artemisia Gentilleschi. Vivemos um momento muito empolgante em que podemos conhecer todas estas artistas e ouvir as suas histórias. Mas ao mesmo tempo podemos pensar em quantos livros sobre Miguel Ângelo foram publicados e quantos livros sobre mulheres artistas do século XVI… Portanto ainda há muito trabalho por fazer.

O seu livro começa por volta de 1500. Não houve mulheres artistas antes disso?

Houve, claro. Gostaria de ter recuado mais. Mas o meu editor disse para fazermos só 500 anos, para manter uma estrutura coesa e para que o livro fosse minimamente compacto e de leitura agradável. Se pensamos em artistas medievais, temos figuras fantásticas, como Hildegarda de Bingen [monja beneditina, poetisa e compositora alemã, 1098-1179] e Guda [freira alemã, autora de iluminuras do século XII], que fez o primeiro auto-retrato feminino. Mas estas artistas também trabalhavam em obras coletivas, e não individuais. Foi no Renascimento que se deu a afirmação do artista, do indivíduo. A partir daí torna-se mais fácil dizer ‘esta pessoa criou esta obra’ e falar sobre isso. Portanto o Renascimento pareceu-me um bom ponto de partida.

Tal como só recentemente as mulheres puderam começar a conduzir na Arábia Saudita, houve períodos na história em que estivessem interditadas de fazer arte ou de entrar nas academias?

Vários. Por exemplo, não podiam fazer estudo de modelo vivo. Podiam fazer cópias de quadros, mas não podiam desenhar figuras nuas. Quando a Royal Academy abriu, em 1768, era assim que os estudantes de arte praticavam, pintando a partir de um modelo nu. E as mulheres estavam proibidas de participar nessas sessões. Portanto, logo à partida estavam em desvantagem. E a Academia de Paris também só admitia quatro mulheres de cada vez. Resumindo, estas instituições tentavam manter as mulheres de fora. Foi preciso passarem mais de 150 anos para a Royal Academy de Londres eleger a primeira académica, em 1936. Outra coisa interessante é que 18 meses depois da abertura, a Royal Academy baniu os bordados, que era uma arte têxtil e um tipo de trabalho, como sabe, a que as mulheres tinham acesso. Ou seja, foram criadas todas estas regras e estruturas para manter as mulheres à parte.

O seu livro chama-se A História da Arte Sem Homens. Mas acha que podemos falar de Artemisia Gentilleschi sem falar do seu pai, Orazio, que foi quem a ensinou a pintar? Ou falar de Lee Krasner sem referir o seu companheiro, Jackson Pollock?

Eu refiro os nomes de vários homens no meu livro. Falo de Jackson Pollock a propósito de Lee Krasner. Falo sobre Orazio Gentilleschi, conto que Artemisia cresceu no estúdio do pai. Refiro que foi o pai de Lavinia Fontana quem a iniciou no mundo da arte. Onde é necessário falar destes artistas e da sua influência, tudo bem, não vejo problema. O que não devemos fazer é definir as mulheres artistas como ‘filha de’ ou ‘companheira de’. Se for aos Uffizi em Florença e olhar para a ficha de um quadro de Artemisia Gentilleschi, vai ler ‘Orazio Gentilleschi’ e ‘Caravaggio’ antes de aparecer sequer o nome dela. Por isso trata-se de ter a certeza de que estamos todos muito conscientes de como estes hábitos estão enraizados. E é por isso que eu faço questão de inserir cada caso no contexto social e político, para dar às pessoas uma espécie de para-choques que lhes permita perceber o lugar destas mulheres sem termos de dizer: ‘Foi a mulher do Jackson Pollock’.

Consegue encontrar alguns temas especificamente femininos, alguma espécie de fio condutor, na arte feita por mulheres?

Não acredito que haja alguma coisa intrinsecamente diferente numa obra de arte só por ter sido feita por uma mulher. A questão tem mais a ver com os ‘porteiros’ [gatekeepers, aqueles que dão ou não dão acesso a um determinado território] que estipularam como se deve olhar para elas. Gosto em especial do capítulo sobre as artes em fibra e a ideia de que as mulheres têm uma ligação muito longa e profunda com os têxteis. Na Bauhaus, por exemplo, elas foram de certo modo relegadas para a oficina de tecelagem. E o que fizeram foi apropriar-se dela. Neste capítulo sobre as artes em fibra, vemos como Faith Ringgold [artista americana, 1930-2024] brinca com as colchas que contam histórias, ou como Sheila Hicks [artista americana, n. 1934] brinca com estruturas arquitetónicas. É incrível ver como as mulheres conquistaram e abriram caminho numa expressão artística de formas que os homens nunca tinham explorado, transformando uma desvantagem em vantagem. E lembro-me também de alguém como Käthe Kullvitz [pintora alemã,1867-1945]. Sempre pensámos que a guerra está cheia de batalhas épicas, de heroísmo, tudo isso. E o que ela nos mostra é o ponto de vista de uma mãe. Dá-me uma ideia muito humana do que significa ser uma mãe que perdeu o seu filho. E não estou dizer que o tema da maternidade não esteja na história da arte – a Madona e o Menino é um dos grandes temas de várias épocas. Mas isto mostra-nos uma perspetiva diferente.

Folheando o seu livro, fiquei com a impressão de que o auto-retrato também é um tema frequente entre as artistas mulheres. Acha que se trata de uma questão de afirmação?

Tenho um capítulo no livro dedicado ao auto-retrato no início do século XX porque me pareceu uma época realmente interessante para as mulheres, no sentido em que deixaram de estar sob a guarda dos homens, em termos legais, deixaram de ser propriedade dos homens. E em certa medida coloca-se a pergunta: ‘Como vou exprimir-me nesta minha nova condição?’. É muito gratificante ver como elas se posicionaram na história da arte numa época em que já não tinham de trabalhar para um patrono que, por hipótese, lhes encomendava uma pintura sobre um tema mitológico. Não, podiam exprimir-se livremente e mostrar quem realmente eram e o que sentiam através desses auto-retratos.

Sente que nos últimos anos começámos a ver mais obras de arte feitas por mulheres nos museus e galerias de exposições?

Sem dúvida. Acho que vivemos uma época muito entusiasmante nesse aspeto. O que também se deve a haver tantas mulheres que se tornaram diretoras de museus e galerias. Isso faz toda a diferença. Na Tate temos hoje Maria Balshaw. É a primeira vez que a Tate é dirigida por uma mulher, e Balshaw tem sido muito eficaz a organizar exposições de mulheres, e com isso tem revolucionado a história da arte. Porque os museus são a porta de entrada e se mostrarem um leque restrito de obras, há todo um mundo de grande arte que nos vai escapar, só vamos ficar a conhecer uma parte da história.

Um dos problemas que tenho com o feminismo mais militante é que parece partir do princípio de que uma obra feita por uma mulher é mais interessante do que a mesma obra feita por um homem…

De que exemplos está a falar?

Digo de uma forma geral. Um livro feito por um homem é apenas mais um livro. Se for de uma mulher, então já merece ser enaltecido, promovido, etc.

Não concordo. No caso do meu livro, acho que cabe ao leitor decidir por si o que vale a pena tirar dele. E também penso que não digo em lado nenhum que as obras feitas por mulheres são melhores do que as feitas por homens. Isto não é uma competição. O que digo é que temos ignorado esta história e precisamos de a conhecer e de a celebrar.

É um complemento do que existia, uma parte da história que faltava?

Pode dizer isso, se quiser.

Este enfoque na arte feita por mulheres alguma vez a impediu de apreciar devidamente as obras feitas por homens?

Boa pergunta…

Imagino que possa chegar a um museu e ficar incomodada porque só tem obras de Velázquez, Rembrandt, Van Gogh…

Não sei dizer. Van Gogh, Rembrandt e Velázquez representam apenas uma parcela da arte, há outras. As mulheres artistas são um interesse que eu tenho e a área que eu escolhi.

Mas gosta desses artistas que eu referi?

Gosto, claro! Como disse, não se trata de uma competição para decidir quem é melhor. Acho que as pessoas devem ver arte que lhes faça sentir alguma coisa ou que as leve a ver ou a compreender algo de novo. Mas se apagarmos as obras feitas por metade da população, como é que as pessoas vão saber que sentimentos essas obras despertam nelas?

Acha que ainda há mulheres artistas por descobrir?

Sim, tantas! O que está aqui é apenas uma fração de uma fração de uma fração. Este livro é apenas uma visão possível da história da arte. Todos os dias aprendo coisas novas. Nesta minha primeira visita a Lisboa já descobri uma quantidade de artistas portuguesas que deviam estar no livro. O que posso fazer é continuar a atualizar o Instagram com novos nomes. Continuo a lutar pela mudança.

Um dos casos que refere de descoberta recente foi o de Judith Leyster [pintora neerlandesa, 1609-1660]. Diz que foi preciso um escândalo para as suas obras lhe serem atribuídas. O que se passou?

Durante muito tempo as obras de Judith Leyster foram incorretamente atribuídas a Frans Hals. Isto porque ela era ainda muito nova quando deixou de assinar os seus quadros. Ao casar-se mudou de nome e passou a ser uma espécie de assistente do marido, que também era pintor. E isso, de certo modo, fez com que ‘desaparecesse’. Ainda há muito trabalho por fazer. Mas temos cada vez mais pessoas a estudar a fundo estas artistas, e quanto mais soubermos sobre elas, mais poderemos fazer para que obtenham o reconhecimento que merecem.

Falámos de artistas mulheres. Picasso é o oposto, uma espécie de paradigma do artista homem – o machista que teve muitas amantes, que às vezes as maltratava e que gostava de touradas. O livro que a neta dele escreveu, Grand-père, retrata-o quase como um monstro. Enquanto historiadora das mulheres artistas, vê-o como um génio ou como um abusador?

Essa é uma questão muito interessante – até que ponto podemos separar a arte do artista. Acho que cabe a cada um formar a sua opinião. Há um livro muito bom que saiu no ano passado, intitulado Monstros [Monsters: A Fan’s Dilemma, por Claire Dededer], que é precisamente sobre isso. E como se pode olhar para a obra de Picasso sem pensar no tipo de pessoa que ele era? Mas não me cabe a mim falar sobre isso. A minha missão é celebrar as mulheres e pô-las no centro do palco, debaixo dos holofotes.