Eis o livro ideal para se ler na retrete, o que desde logo deveria fazer dele um clássico, atendendo à importância universal dada a essa divisão onde passámos alguns anos da nossa vida na mais pia contemplação. Com A Flor Cadáver e outros poemas, Sousa Braga desenha um largo compêndio e abalança-se numa irónica meditação sobre as lições que podemos retirar da merda.
Em tempos, a sensação mais comum terá sido de que havia margem suficiente para se escrever mil poemas. Para estar diante do assombro do mundo e reter dele certos detalhes e a sua desvairada irradiação, mas hoje não deve ignorar-se todo o excesso e o estupor que geram em nós os enraizados hábitos que tomaram conta deste ofício. Deve, por isso, escrever-se antes de mais contra os exageros e torpezas dessa cadela infecta, da sarnosa poesia, como lhe chamou o poeta mexicano José Emilio Pacheco, sinalizando como esta se deixou abater pela risível variedade de neuroses, mas sobretudo talvez por esses preconceitos tão comuns entre um bando de tagarelas que julgam refugiar-se nos claustros da eternidade, e que repetem solenemente gestos esvaziados há muito de sentido, sendo esse, afinal, o preço que pagamos por não sabermos viver. E talvez nem seja o tempo o problema, mas a nossa época, que, segundo Pacheco, nos deixou a falar sozinhos. “Oremos pelas novas gerações/ atoladas em tédios e decepções,/ com elas na noite nos afundaremos…”, escrevia Amado Nervo. Estamos tão seguros sobre o que seja a beleza que não mais esta foi alvo de investigações sérias nem produziu quaisquer deslocamentos, fluxos migratórios neste sentido ou naquele. Mas o importante seria abarcar o horizonte desses emigrantes expulsos da posteridade, sondar as combinações que ameaçam fazer ruir o resto, esses altares e lajes que se erguem na preservação de um reino de musgo, e que é feito mais para reter uma imponência estagnada do que para captar a natureza incansável e “o poderio do instante perpétuo e desterrado”. Talvez um elemento de beleza vibrante, hoje, só possa ser descoberto expondo as entranhas, recuperando os versos de Artaud que Jorge Sousa Braga coloca em epígrafe no seu mais recente volume de poemas: “Onde cheira a merda/ cheira a ser.” A citação fica-se por aqui, mas vale a reproduzir os versos que se seguem: “O homem podia muito bem não cagar, não abrir a bolsa anal/ mas preferiu cagar/ assim como preferiu viver/ em vez de aceitar viver morto./ Pois para não fazer cocó/ teria que consentir em/ não ser,/ mas ele não foi capaz de se resolver a perder o ser,/ ou seja, a morrer vivo (…)” Assim, em vez do canto ou do voo do pássaro, talvez assuma um alcance mais sugestivo o verso que nos chame a atenção para a merda que também esse ser tão leve faz. Talvez esse verso assim se mostre mais comprometido com o elemento de pavorosa iluminação daquele ser que, humilhado e reduzido à condição mais desesperada, mesmo quando encerrado, e sem acesso a quaisquer meios para se recriar, pinta as paredes com a própria merda.
É bem sabido, desde Roland Barthes, que não basta escrever a palavra “merda” para que o leitor sinta o mau cheiro. Mas Dominique Laporte, que se dedicou mais a fundo à questão, escrevendo uma “História da Merda”, entre as suas reflexões refere como a língua se foi formando classicamente através de um esforço higiénico, ou seja, repudiando e livrando-se de toda a carga de imundície, de toda a escória para não correr o risco de que algum narrador viesse inundá-la com esses eflúvios. Assim, o modo como se apura a linguagem tida como bela, a forma como uma língua já de si empurra para um estilo mais precioso, liga-se, segundo Laporte, a um revelador desperdício. E segundo ele, não há melhor prova do que essa torrente de poemas anónimos com que nos deparamos nas portas ou nas paredes das casas-de-banho públicas, mas também na abundância de perífrases e nessa espécie de obsceno estilo que passa por retorcer a sintaxe, e que caracteriza uma literatura que se julga marginal, embora seja tão abundante, e que não raras vezes se dedica aos aspectos excrementícios da existência, como se a defecação e aquilo que daí resulta devessem ser consideradas como uma das belas artes. De qualquer modo, é evidente que, se muitos gostam de uma linguagem escatológica, estes parecem ser aqueles a quem mais faria impressão ir ao ponto de sentir o fedor daquilo que essas palavras nomeiam. E Laporte aponta assim para essa incumbência do signo que deve exercer um efeito de negação a respeito daquilo que na realidade este significa, e isto quer dizer, além de uma linguagem embelecida, há ainda que considerar a sábia justaposição dos signos que mantêm à distância certas coisas. Pressentimos muitas vezes que se tornou uma forma de extravagância um tanto inócua recair nesse género de provações estéreis, que passa por estetizar a merda. À medida que os usos e conveniências burguesas se impunham à língua, foi preciso que todas essas fontes de contaminação que faziam da linguagem, antes escabrosa e mal-educada, como notava Du Bellay, fosse alvo de uma operação de limpeza, sendo desembaraçada de tudo aquilo que lhe dava um certo mau hálito, de modo a se adequar a usos elegantes.
Hoje, sabemos a quem pertence a língua que falamos, quando a vemos ser elogiada apenas nas alturas em que consegue corresponder às três exigências formuladas pela civilização, tal qual esta foi definida por Freud: “limpeza, ordem e beleza”. É até difícil atacá-la e a todos esses símbolos tão enaltecidos que este consagra sem se ser imediatamente desqualificado num debate, sendo-se apodado de grosseiro pelos adversários e mesmo por aquela parte do auditório que, embora espoliada da vitalidade do seu idioma, também participa nessa acusação contra um linguajar que lhe sugira qualquer forma de barbarismo. As línguas que se furtam a essa forma de controlo e vigilância por parte das gramáticas, dos termos como criaturas capturadas em compêndios, furtam-se pelo efeito de crioulização, ou têm na gíria e nos palavrões ainda certos redutos, zonas sórdidas do idioma, frequentadas apenas por seres que extraem uma cultura da sua condição sinistrada. A “merda” parece ser essa senha que fixa uma linha de fronteira. É desagradável, mas usada com moderação não ofende nem merece especial censura. Mas é quando esta é invocada em ocasiões realmente impróprias que causa desconforto. Talvez então o mau cheiro se imponha com um efeito de denúncia, como um detonador. É que a merda também é um princípio de vida, lembrando esse lado informe, imperfeito, doloroso; esta é fecunda como o espírito. Sabe-se, pela leitura do seu diário, que Michelet, o filósofo e historiador francês, quando sentia que lhe faltava a inspiração, buscava-a nas latrinas, nos lugares onde a imundície servia para provocar um choque e afinar-lhe os sentidos, sentindo que o seu odor sufocante lhe trazia um sopro animador.
Muitos autores têm assinalado como digestão e alimentação assumiram um papel decisivo numa sociedade que vive obcecada com a “saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social” (Foucault). Laporte vinca ainda que para esta sociedade, a boa digestão é um correlato do lado inodoro, desse elemento dos signos como forma de impor uma distância, e alcançar o que se considera benéfico para a saúde, para a reprodução da espécie, dos corpos translúcidos. Assim, a boa digestão inscreve-se na economia de uma sociedade onde o inodoro denota o processo de câmbio e se converte no significante do que é rico, atractivo, o que é belo no seu tempo, e em que o produto que se extrai dos corpos e do seu odor é apenas aquilo que garante a reprodução das riquezas. Isso mesmo dá origem a esse mito higienista que leva à desaparição do excremencial, à sua liquidação.
Desde o título, o livro mais recente de Jorge Sousa Braga assume um poder de evocação que é, hoje, bastante raro na poesia portuguesa. Em vez de se servir do mundo apenas para recolher algum pigmento exótico de forma a tatuar-se e executar um simplório ritual que chame atenção para si mesmo, e mesmo se em nenhum momento das páginas desta obra se desprende algum fedor, pelo menos o imaginário é empurrado numa direcção menos comum. A tal flor cadáver é uma planta ameaçada de extinção devido aos perigos de deflorestação que se estendem à ilha de Sumatra (Indonésia), de onde esta é nativa. Diz-nos o poeta que esta pode atingir três metros e que, a certa altura, “parece que fica com febre e o calor daí resultante ajuda o seu cheiro a carne podre a dispersar-se e a atrair moscas e outros insectos”. Trata-se de um expediente carnívoro que se sustem por dois ou três dias, antes de a flor colapsar. Faz parte de um ciclo mais complexo, sendo que a flor dá origem a uma folha com três ramos na ponta, cheios de folículos, e que estes duram oito meses, antes de caírem. Ora, tudo isto é o expediente de que a planta se serve de forma a que um tubérculo subterrâneo possa armazenar a energia suficiente de forma a estar apta a florir uma vez mais, e a atrair e caçar presas sem sair do seu lugar.
Sousa Braga sublinha que a tal flor aparece apenas de longe em longe, de forma imprevisível, tão desproporcionada quanto efémera; sugere ainda que possa haver algo neste ritual que pode (ou não) dizer alguma coisa sobre nós. Laporte também nota na sua “História da merda” que os cadáveres humanos são entregues à terra e a alimentam, sob o risco de se tornarem um risco para os vivos. Mas vinca ainda como as práticas mortuárias no Ocidente levaram a que se imaginasse que o odor a cadáver, tal como o odor a merda, alimentassem um temor semelhante ao que sentia pelos seus efeitos mórbidos, e que, por isso, a história da sua percepção olfactiva, como a da distância a que desejava manter-se deles, são paralelas. Este autor refere que quando duas civilizações se cruzaram, e brancos e negros contactaram uns com os outros, o branco tinha para o negro um odor a cadáver, ao passo que o negro tinha para o branco um odor e uma cor de merda. “Este comum reconhecimento sustenta o seu ódio recíproco, odiando-se um ao outro precisamente porque se devolvem a imagem do que cada um esconde e dissimula de si mesmo, e vendo nessa obstinação do outro em arrancar-se da própria terra a cega arrogância daquele que não sabe que deve morrer.” Mas aquele que triunfa impondo ao outro a sua civilização não pode deixar de considerar-se imortal, diz-nos Laporte. Fica claro esse elemento de ilusão e conflito, daquele que se impõe como conquistador, tendo deixado a sua terra, e indo cultivar a do outro, expropriando-o desta, apenas para se iludir quanto à sua capacidade de escapar ao comum destino que os une. Sousa Braga atalha, assinalando como “em cada flor há um cadáver, em cada cadáver há uma flor”. E assim, o que prevalece é este ciclo, o elemento transitório, efémero. Também essa mistura entre a beleza e a sordícia, que tantas vezes assinala o auge de um processo de maturação erótica, pois, no momento em que o homem leva ao limite a sua busca pela eternidade, cruza-se, nem que seja por um instante, com a morte, reconhece que esta o marcou.
O livro de Sousa Braga fornece a matéria exuberante que poderia servir para ilustrar um tratado sumptuoso sobre as lições que devemos tirar de tudo aquilo que desperdiçamos, aquilo que nos parece inútil, mórbido ou mesmo degradante, tudo aquilo que se mostra inconveniente, inoportuno, e que desde cedo esteve lá como uma espécie de aviso. Basta notar a estranheza como nos primeiros anos de vida os dejectos são para a criança um motivo de estranho fascínio. Como logo depois, sentindo como tantos adultos sentem diante da merda um certo desconforto, se servem dele para provocar e exibir a sua impetuosidade triunfante, daquele ser que não aprendeu ainda a temer a morte. A flor cadáver desdobra-se como uma metáfora formidável para todos estes sinais, tocando a relação íntima que outras espécies têm com a merda, desde os seres que esta atrai, até aqueles que comem os seus próprios dejectos. Está cá “o escaravelho enrola-merda” que transporta consigo aquele monumento, que além de servir como uma provisão constante, é também uma prova dos seus atributos, dependendo da bola de esterco para conquistar a fêmea. E ainda demonstra a sua habilidade dando uma volta em cima dela antes de acasalarem. Sousa Braga parece satisfeito por acumular estes efeitos quase anedóticos, mas os poemas que se oferecem a ler como saborosas legendas para uma imagem instável e que, de algum modo, parece superar a escala que as nossas percepções atingem, vão gerindo subtilmente as inflexões, de forma elíptica, com aquela sua escrita concisa, num estilo lacónico e clássico, representando com sobriedade certas noções que esfacelam a prepotência das sociedades modernas.
Assim, perante um leitor que não perde sono com as actualizações da sexta extinção em massa neste planeta, belisca-o levemente notando que “por alguma razão os egípcios/ consideravam o escaravelho/ um animal sagrado”. Se, nos nossos dias, tem dominado a poesia portuguesa uma pornografia e um kitsch da morte, que é – dizia Goethe, farto do culto das máscaras funerárias – uma artista assaz medíocre, Sousa Braga revela-se, face a essa linha, um mestre de dissimulação, de alusão, de reticência, servindo-se de um realismo pacato, mas de um alcance inesperado e profundo, para desmascarar as contradições e ilusões próprias da vida moderna. Escreve poemas aparentemente leves e elusivos, mas que conseguem ressoar e, às tantas, ter um efeito bem mais inquietante do que tantas dessas ruidosas ostentações subversivas, que depois não alteram minimamente a nossa percepção em relação ao mundo ou às nossas vidas. Entre um certo niilismo pedante e a pieguice kitsch que hoje nos servem como poesia, conseguimos preferir a desassombrada imagem desses “comedores de merda” de que nos fala este poeta. Ele não pretende dar-nos uma imagem total da realidade, mas parece satisfeito por acrescentar a uma enciclopédia radiante um capítulo memorável e que combina a vertente paródica na forma como o seu olhar atravessa a época.
É um livro que, se lido apenas uma vez, não deixará uma impressão demasiado forte nem qualquer espécie de fedor. Mas voltando lá ocasionalmente, temos a sensação de que das suas folhas se desprende algo dessa força de poetização universal que resgata o mundo ao efeito de reificação, reconciliando o espírito com a natureza e superando um certo efeito de cisão intelectual a que tantas vezes ficamos sujeitos lendo a poesia contemporânea, que parece em muitos casos estar endividada com um fulgor ensaístico, em muitos casos afinado segundo pressupostos académicos. Jorge Sousa Braga, que se estreou em 1981 com “De Manhã Vamos todos Acordar com uma Pérola no Cu” (ed. Fenda), sempre praticou um lirismo faceto, sem demasiada paciência para “toda esta merda douta que nos cobre há séculos,/ cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos/ os escravos de outros” (Jorge de Sena). Nele, a ironia sempre foi uma forma de se esquivar da sobranceria daqueles que se servem dos versos para assumir a pose de estátuas. O poeta mostra-se consciente de como os nomes mais baixos acabam por ser bem mais hábeis na aproximação às coisas, como uma certa crueza traz consigo uma tensão bem mais fiel a esse compromisso de descer do abstracto para o concreto. Neste sentido, não sendo o mais transgressivo dos poetas, num livro como este dá um passo importante no sentido de se comprometer com a parte maldita, na linha de Bataille e alguns mais, decidindo-se a aviltar os catecismos idealistas que uma vez mais predominam no panfleto da lírica portuguesa actual, procurando “penetrar no fundo das coisas, recusando as imagens indiferentes, e simplesmente belas, para, então, fazer transparecer o mundo”.
Eliane Robert Moraes refere que Bataille manifestou alguma predilecção pelas matérias que assinalam o rastro que qualquer organismo deixa à sua passagem, de secreções a dejectos, do suor à pele, “todo esse dispêndio corporal que se lança para fora do corpo, não importa por que buraco, desde que provoque sensações intensas, e desde logo algum estranhamento, náusea ou nojo, podendo participar também desses estados alterados como êxtase, fúria ou paixão”. Deixando o monumental ou exemplar aos outros, Bataille ia ao ponto de descrever a sua impetuosa actividade mental como “um entulho carregado por uma torrente”. Daí que os detritos, esses resíduos excluídos do mundo produtivo, e que surgem dispersos, de forma caótica, tendem a prevalecer sobre as supostas “formas puras” convencionais. O que lhe importava era fazer as suas explorações no domínio da negatividade, reconhecendo a combatividade de toda a forma de trabalho que não redunda em produção, mas está mais perto do seu contrário, da destruição.
Se não iríamos ao ponto de qualificar a poesia de Sousa Braga recorrendo ao termo de Mário de Andrade, que defendia uma “obra malsã”, podemos reconhecer que esta tem-se esquivado da postura edificante que vão assumindo os poetas que uma vez mais reclamam princípios de ordem moral para colher o favor e o patrocínio institucional, preferindo introduzir alguma dose de veneno, ressaltando o elemento transitório ao recolher aquilo que “sobra, que fica de fora, que resta na condição de resto e assim se impõe” (Eliane Robert Moraes). E se hoje, em face das evidências do colapso que nos cerca, começa a haver uma maior abertura e acolhimento para os testemunhos literários do negativo, essas obras e textos que dão a palavra ao interdito e ao inconsciente, ao irracional e até a elementos tidos como grotescos, é importante assinalar que Sousa Braga sempre mostrou um certo entusiasmo e apetência por aquela insaciável vida erótica que se oferece margem para explorações bem para lá dos limites da decência, arrastando com ela todo o imaginário, cruzando o território da indiferença e deixando cair por terra as formas gastas da sociedade. A grande subversão deve uma vez mais pensar o erotismo como uma forma de se desembaraçar dos elementos convencionais, balançando na direcção do futuro, pois mesmo que não lhe reste tanta esperança, há, pelo menos, o abismo. E neste livro a merda tem esse efeito de recomposição do quadro estético vigente, recuperando daquela estratégia de impor uma distância crescente entre os signos e as coisas, até, ou sobretudo, na representação de quadros de miséria existencial. Um dos momentos mais instigantes desta reunião são os nove haikus (que, na verdade, estão mais perto de ser aforismos do que exemplos daquela tão apurada e canónica forma japonesa – mas até nisso se pode dizer que talvez o poeta se esteja a cagar para o cânone) em que Sousa Braga traça uma arte poética através da merda, a merda em si, a que nos iguala e que, idealmente, exige de nós um momento de retirada e contemplação diária. “O poder da merda/ é um/ não poder”, diz um dos aforismos. E outro diz: “A merda não faz nada/ para se impor/ é merda e chega”. E é fácil perceber como, hoje, este carrega uma especial ressonância política entre nós. Outro diz-nos que “A merda/ é a última/ fronteira”. Os últimos têm um inusitado vigor: “Nem todos/ são capazes de ler/ a merda” e “Nada nos pertence/ mais que a própria/ merda”. Mas o melhor é o primeiro: “Tudo pode ser/ domesticado/ menos a merda”. Talvez se a poesia pudesse voltar a produzir esse efeito de náusea ou revolta, e “ser como a merda/ estar sempre/ no lugar errado”, talvez então pudesse conter um efeito de ameaça, profanando o sacrário para onde tão empenhadamente alguns procuram empurrá-la. Às tantas, Sousa Braga lembra como a merda chegou a ser um problema teológico, pois se os evangelhos lembram que Jesus comia e bebia, entre as mentes que vivem perturbadas com o lado impuro da criação, a hipótese de este defecar contém em si algo de blasfemo. Mas o poeta não tem dúvidas: “Nós somos nós e os nossos excrementos. Não se pode conceber o paraíso sem a merda.”
Já no seu primeiro livro, Sousa Braga tinha uma “Epístola sobre a merda”, que abria com este díptico: “As retretes transformadas em santuários:/ eis a minha obsessão”. Mais à frente lançava este desafio: “Só é poeta aquele que/ é capaz de comer as próprias fezes”. E concluía com mais este díptico: “A merda é a única coisa/ que não se pode conspurcar”. Numa recente entrevista a Ricardo Araújo Pereira, Sousa Braga adiantou que a epístola foi escrita sob a influência de um poema de Hans Magnus Enzensberger, um poema apenas curioso, talvez com o tom e a consistência certa, e que questionava o motivo porque conspurcamos o seu bom nome, da merda, usando-a para exprimir raiva. Sousa Braga diz que ficou com este poema atravessado, e que 40 anos depois este livro surge como uma resposta mais desenvolvida.
Na referida entrevista, o poeta adiantava ainda que quando começou a escrever os poemas deste livro teve “a preocupação de não cair na escatologia, naquela escatologia que confunde obscenidade e excrementos”, admitindo, contudo, que talvez, mas de forma inconsciente, “tenha aflorado a outra escatologia em que o Cardeal Ratzinger (Papa Bento XVI) era especialista: a ciência acerca das coisas que hão-de suceder depois do fim do mundo”. Aqui, além da provocação, transparece essa clareza sobre o poder que a humildade nos oferece, uma vez que mesmo a pior forma de submissão nasce dessa tendência que há nos homens para respeitarem aqueles que lhes mentem, apenas para não se confrontarem com o que sempre souberam. Talvez por isso Sousa Braga nos sirva esta heresia tão delicada como o gesto daquele que se agacha nas traseiras de uma igreja e ali defeca. Assim, conta-nos como “Numa granja no sul de Milão/ abriu ao público/ o Museu da Merda”. Finalmente, alguém parecia ter-se inspirado naqueles seus versos que propunham que as retretes fossem encaradas como santuários. Mas os versos que se seguem é que nos revelam a graça fulminante da atenção do poeta: “À entrada numa placa/ pode ler-se/ ‘Nunca agradeceremos suficientemente/ à merda/ aquilo que a merda faz por nós’”. E depois vem o remate, subtilíssimo, como um sorriso prenhe de malícia: “À saída/ convidam as pessoas/ a deixar a sua assinatura”.
Talvez, no final de contas, o poeta seja o pior dos canalhas, esse ser que deve ser expulso para bem do prestígio da nossa cultura, esse pulha que tira o maior gozo de fazer pouco desses momentos em que uma cultura não sabe fazer mais do que enaltecer-se a si mesma, limpar e esconder a sua decadência como se faz com as fezes. E, a este título, talvez o poema mais poderoso do livro seja aquele que ocupa a página 34: “Em 1964 Günter Brus/ subiu ao palco em Viena/ despiu-se/ urinou na cova da mão/ e defecou perante o público/ Depois untou o corpo/ com os excrementos/ enquanto cantava/ o hino nacional austríaco// Existe mais do que uma versão/ sobre o que sucedeu em seguida/ que fugiu para a Alemanha/ que esteve preso durante seis meses// Independentemente da versão/ estava feita a revolução”. O gesto mais comum feito no menos apropriado dos lugares. Se os poetas percebessem que foi sempre só isto o que foi preciso para levar as coisas até às últimas consequências – que fizessem precisamente o que menos se esperava deles. Mas numa breve recensão no Expresso, destacou-se antes o poema em que se fala sobre a necessidade de se retirar o estigma que paira sobre os excrementos, ressaltando a sua qualidade enquanto adubo, “ideal para o cultivo/ de abóboras e beringelas”. Curiosamente o crítico deixou de fora apenas o último verso: “e do nabal”. Escapou-lhe o manguito para aqueles que pretendem reduzir a merda à sua função produtiva, quase redentora.