Discreto, mesmo nas situações mais tensas, viu passar pelo ‘seu’ Snob grande parte da vida política, jornalística e artística dos últimos 50 anos. De Presidentes da República eleitos depois do 25 de Abril só não viu entrar pela sua porta o austero Cavaco Silva. José Cardoso Pires ou José Saramago foram seus clientes. Abandonou o barco há cerca de um mês mas ainda se lembra dos códigos de cartão de crédito de 20 clientes. ‘Vou continuar a sonhar com o Snob’, diz.
Só fez a quarta classe, mas era um doutor da vida. Nasceu em São Martinho do Campo, Póvoa de Lanhoso, a 25 de dezembro de 1946, tendo chegado ao Porto em 1960, onde foi trabalhar para uma mercearia e depois para uma tasca: «Comecei cedo no negócio», diz a rir. No Snob, desde dezembro de 1974, o senhor Albino, ou Albino, nunca ninguém o tratou pelo apelido Oliveira, foi durante 50 anos o anfitrião de jornalistas, políticos, gentes das artes, e não só, que gostavam de se saciar com um bife, um cozido à portuguesa, que preparava três dias antes em casa, ou com os pastéis de bacalhau, os croquetes ou os rissóis que a sua mulher, Dona Roseta, fazia. O Snob era o refúgio de muita gente e de muitas histórias que, obviamente, Albino não quer revelar, embora fiquemos com um retrato de um certo Portugal com o seu testemunho ao Nascer do SOL. Durante muitos anos desafiei-o para uma entrevista, mas só agora que já não está na mítica casa da Rua do Século é que aceitou falar sobre o bar-restaurante e sobre si. Durante a covid vendeu um terreno para ‘safar’ o bar, mas a proibição de se fumar ‘obrigou-o’ a passar o espaço ao grupo do Café de São Bento, que reabrirá portas a 16 de dezembro. Albino, agora, mantém os mesmos hábitos e só adormece por volta das seis, sete da manhã, até conseguir esquecer o Snob…
Quando chegou a Lisboa?
Quando tinha 18 anos o meu irmão Adriano foi-me buscar à terra. A minha irmã casou-se em São Martinho do Campo, Póvoa de Lanhoso, e no casamento ele convenceu-me a vir para Lisboa. Como era diretor do Maxime, na Praça da Alegria, foi para onde fui trabalhar.
Que era um cabaret?
Sim, era mesmo cabaret, nunca tinha estado em nenhum, mas rapidamente comecei a aperceber-me de como aquilo funcionava. Havia as rapariguinhas que iam para ali passar a noite para o engate, e pronto, era isso.
E não ficava deslumbrado com aquele mundo?
Não, uma pessoa tinha muito tempo para se deslumbrar e não precisava de estar ali no trabalho a deslumbrar-se.
Mas houve alguma história que lhe ficou na memória?
O Maxime tinha dois empregados de balcão que eram o Álvaro e o Alfredo, e um dia eu estava com uma febre na casa dos 42º e fiquei em casa doente, mas eles faltaram ao trabalho. A minha cunhada ligou para o meu irmão a dizer o que se passava e que eu tinha ido a um médico que havia numa farmácia na Praça da Alegria, mas o meu irmão disse que eu tinha de ir, mesmo estando com 42º. Levantei-me e fui, pois não havia ninguém para ficar como cabo de dia ou no bar. Cheguei, peguei num copinho de whisky, gelo, água de Castelo, bebi um ou dois, e devo ter ficado sem a febre toda [risos]. No outro dia já estava bem.
O que fazia lá?
Era cabo de dia, que era onde os empregados de mesa e de balcão iam buscar as bebidas, os whiskys, os cocktails, as garrafas de champanhe sempre prontas para eles levarem para as mesas, etc. Era eu que lhes passava as bebidas todas. E, às vezes, estava no bar quando os meus colegas estavam de folga. Ali estive dois anos até ir para a tropa. Entretanto, o meu irmão tinha-se feito sócio do bar Galo, na esquina do Parque Mayer.
Fez a tropa onde?
Assentei praça na Carregueira, apesar de estar previsto ir para Braga. Fiz a especialidade em Sacavém, e depois fui parar a Lamego, para reabastecimento e munições.
Sempre nos reabastecimentos… Mas não foi para a guerra colonial?
Não, penso que como estava lá o meu irmão Manuel no Ultramar, eu não fui. Entretanto, tive um aspirante que me deu a especialidade em Sacavém, que com uma garrafinha de whisky que levei para ele, conseguiu pôr-me em primeiro lugar no meu pelotão. Éramos 30 e eu fui o melhor soldado que ele teve lá [risos]. Eu não era mau de todo, mas… pronto! Depois fui para Lamego e via que o pessoal estava quase todo a ir para Guerra Colonial e eu estava a ficar quase em último naquele pelotão. Pensei que mais dia, menos dia, também me tocava a mim. Até que a especialidade seguinte à minha ficou pronta e percebi que já não ia.
Estudou até quando?
Até à quarta classe.
Quanto tempo ficou na tropa? Ficou sempre em Lamego?
Três anos, um mês e não sei quantos dias. Não fiquei sempre em Lamego porque consegui arranjar uma troca com um desses rapazes que era de Lamego mas que estava em Tomar. Para ele foi ótimo que foi para sua terra e eu fui para Tomar, tendo ficado mais perto de Lisboa.
Mas ia trabalhar nessa altura?
Sim, para o Maxime, durante algum tempo, pois o chefe de mesas não gramava muito o meu irmão, e como era ele que tirava a nossa percentagem, que era de 12,5%, mais as gratificações, arranjou problemas. Mas o patrão, o Carlos Santos, decidiu que me pagava 500 escudos por fim de semana.
Que era dinheiro na altura?
Era! Até que um dia expliquei ao meu irmão o que se passava no Maxime, com a história do chefe de sala, e ele disse-me para os mandar dar uma volta e que passava a trabalhar no Galo nas minhas ‘folgas’ da tropa. Passei a trabalhar na parte debaixo, que também era uma boîte.
Que também era de alterne?
Sim. Aquilo só começava a trabalhar por volta da uma, duas horas da manhã. Quando as outras casas estavam todas a fechar, o Galo começava a funcionar melhor, mas estava aberto 24 horas por dia.
Como assim?
Quando fechava em cima, os clientes entravam pela parte de trás, ao pé do Cantinho, para a boîte. Na parte de cima, que podemos dizer que era mais ou menos um restaurante, paravam lá umas raparigas durante o dia, iam lá comer, e engatavam uns clientes. Mas a parte debaixo era como se fosse o Maxime.
E quanto tempo esteve no Galo?
Durante o tempo que estive na tropa. Quando acabei, voltei ao Maxime, pois eu era empregado fixo da casa. Fui para o Galo, durante a tropa, porque o meu irmão ia dar a volta pelas outras boîtes e passou a chegar ao Galo só por volta das três da manhã e dava-lhe jeito que eu estivesse lá. Ia ao Hipopótamo, às Caves, etc, para lembrar os clientes que o Galo estava à espera deles. Muitos deles chegavam só às quatro, cinco da manhã.
E o senhor Albino saía a que horas?
Nós fazíamos o seguinte: os clientes estavam ali até às sete, oito horas, e quando chegavam os empregados da parte de cima nós dizíamos aos clientes para subirem. Havia uns engenheiros da CUF que ficavam ali a beber, beber… Eles passavam para a parte de cima, que abria às oito e meia, e nós íamos embora.
Mesmo com a luz do dia eles continuavam a beber…
Sempre! Havia um empregado que costumava levar a casa um dos engenheiros da CUF, só que, como não tinha carro, exigia depois poder regressar no carro do engenheiro. Este, um dia ou dois depois ia lá buscar o carro, mas só o levava se estivesse um bocado ‘melhorzinho’ (risos). Era giro aquilo.
Quanto tempo, depois da tropa, esteve no Maxime?
Pouco, talvez uns seis meses. Eu tinha uma cunhada que casou com um marinheiro alemão, que tinha sido defendido pelo meu sogro de uns tipos que lhe queriam bater. Ele ficou muito amigo do meu sogro e acabou por casar com uma das filhas dele. Como eles viviam na Alemanha convenceram-me a ir, onde passei quatro anos.
A fazer o quê?
Trabalhava num armazém de tudo o que era partilhados: tudo o que faz parte de telhados, placas, telhas, e outras coisas. Dei-me lá muito bem, aprendi num instantinho a falar o alemão necessário para poder chegar a chefe de equipa – eu andava com um monta cargas a carregar camiões. Tinha três ou quatro tipos que trabalhavam comigo, uns eram alemães, outros eram jugoslavos e eu conseguia perceber melhor do que eles todos os materiais que eram precisos carregar. Em seis meses aprendi aquilo tudo.
Mas safava-se bem em alemão? Sempre teve facilidade para aprender línguas?
Muito bem! O chefe entregava o papel das encomendas aos motoristas e eles entregavam-me o papelinho a mim, e eu é que tinha de perceber aquilo tudo.
Como aprendeu a falar alemão?
A falar com os meus sobrinhos, que eram miúdos. Eles tinham a idade dos meus, cinco, seis anos, e aprendi com eles o suficiente para depois poder desempenhar aquele papel dentro do armazém. Nunca dei nada trocado, foi sempre tudo certinho nos três anos que trabalhei lá. Entretanto levei para a Alemanha a minha mulher, que levou os meus filhos. Nessa altura só tinha ainda dois – o Zé Carlos e a Ana Isabel. Depois a Cristina nasceu lá. E tenho outro filho que nasceu já cá, depois de ter vindo da Alemanha, que tem agora 40 anos.
Porque saiu da Alemanha?
Porque o meu irmão me convenceu a vir para o Snob.
Em que ano?
Em dezembro de 1974.
Quem estava nessa altura no Snob?
A Dona Maria na cozinha, ela esteve sempre lá – eu trabalhei 50 anos, a Dona Maria, que já morreu há sete anos, deve ter estado lá os mesmos anos que eu. Só que ela foi para lá mais cedo, em 1967.
O Snob abriu em que ano?
16 de novembro de 1964.
Como foi chegar a Portugal em pleno período revolucionário?
A única diferença que notei é que as pessoas podiam andar mais à vontade. De resto, não senti nada de muito diferente .
O Snob já era um poiso de jornalistas nessa altura?
Sim, sim.
Não havia grandes discussões acaloradas?
Sim, e segundo o meu irmão dizia, parte do grupo que fez o 25 de Abril cozinhou o plano no Snob. Pelo menos era o que o meu irmão dizia.
Em finais de 1974 qual era o tipo de clientela?
Nessa altura, também trabalhava lá o meu irmão Manuel. Nesse período o meu irmão Manuel e o Fernando Correia abriram ali perto o João Sebastião Bar. O meu irmão Adriano quando soube que o Manuel ia fazer uma sociedade com o Fernando Correia, pô-lo a andar e foi por isso que me foi buscar à Alemanha. Quando eu cheguei cá não havia quase clientes, só que a partir daí, lá está, começou a haver muito mais dinheiro, vocês, os jornalistas e outras pessoas, começaram a ganhar bastante mais, os ordenados aumentaram duas ou três vezes. E é daí que os jornalistas começam a aparecer em força no Snob.
Não havia cenas de pancadaria?
Os jornalistas, em princípio, não iam andar à pancada ali dentro. Eles conheciam-se todos uns aos outros. Além dos jornalistas, começaram a aparecer os deputados, ministros… Lembro-me muito bem do ministro dos Transportes que ia lá muito durante a tarde beber um copinho com a namorada. Depois começaram a ir os outros todos. Eram jornalistas, deputados, o Mário Soares sempre foi, desde o princípio. O Otelo também passou por lá muitas vezes para ir comer uma tostazinha ao fim da noite. Passava muito gente por ali nessa altura.
O José Cardoso Pires também é dessa altura?
Ele não ia lá comer os bifes, mas ia comer uns preguinhos. Quando ia sozinho ficava quase sempre no balcão, onde o servia. Quando ia com alguém é que se sentava nas mesas. O Saramago também ia lá jantar com a senhora às sextas ou aos sábados. Ficava com o José Manuel Barata Feyo, com o dr. Nelson Matos, da Dom Quixote, por vezes, sentavam-se todos na mesa 10, à entrada, com jornalistas. Também havia um pintor conhecido que andava sempre bêbado e que gostava de bater nas mulheres. Esse nunca me esqueci…
Mas em meados dos anos 70 havia figuras que se destacavam pela excentricidade. Contam-se histórias do grande repórter Fernando Gaspar.
O Fernando era todo ‘pra frentex’, muitas vezes aparecia de xaile e lábios pintados, mas a maneira de ele falar distinguia-se muito, eu achava-lhe muita piada. Ele estava sempre bem disposto.
Passou por lá muita gente?
Se formos a ver, quase todos os Presidentes passaram pelo Snob. O Mário Soares, em particular, ia muitas vezes lá, mesmo quando era primeiro-ministro ia lá comer a sua tostazinha e levava o grupo dele, raramente eram menos de cinco, seis, sete pessoas.
Ramalho Eanes apareceu alguma vez?
Apareceu uma única vez. O responsável foi capitão de Abril, António Ramos, que casou com uma senhora que era de Manteigas, que tinha fábricas de lanifícios. Ela quis fazer uma exposição e como o António Ramos nos pediu, nós aceitámos. Foi a única aparição de Ramalho Eanes no Snob. Mas os filhos dele, principalmente o Manel, era cliente e aparecia sempre que lhe apetecia comer um bife.
E os outros Presidentes?
O Jorge Sampaio passou por lá, o Marcelo Rebelo de Sousa foi lá dar a entrevista depois do mergulho no Tejo… Além de Presidentes, o Mota Pinto, o Guterres – o Snob era frequentado mais por socialistas, embora fossem lá de todos os partidos. O Paulo Portas era um cliente assíduo…
Nessa altura, o Snob fechava quando?
Só no dia 25 de dezembro, depois passámos a fechar no dia 24, antes disso eu saía do Snob às 23 horas e ainda conseguia jantar com a família. Havia alguns jornalistas que viviam sozinhos e que apareciam para jantar nessa data.
O que sentiu que foi mudando de década para década?
Notei que começou a haver trabalho. Cada vez havia mais clientes, em 78/79 começámos a trabalhar a sério, e o meu irmão já andava contente. Dava para nos pagar a todos e ainda ficava com dinheiro. Em 80 ainda aumentou mais e foi sempre a subir até 94/95. Nessa altura, os jornalistas ganhavam mais e podiam gastar mais.
E também havia muita gente do teatro.
Sim, muita gente da cultura. A Maria do Céu Guerra foi cliente até ao fim, a Simone de Oliveira ia muito antigamente, a Márcia Breia, havia muita gente.
Mas havia grupos de jornalistas que tinham discussões muito acaloradas.
Sim, havia discussões fortes por alguns jornalistas serem de partidos muito diferentes. O Torcato Sepúlveda, o António Ribeiro Ferreira, o Octávio Ribeiro, o César Camacho… o José Manuel Barata Feyo, discutiam muito, mas ficava tudo bem. E havia uma coisa muito importante: tudo o que se falasse ali não era escrito em nenhum lado. O que se dizia no Snob acabava no Snob.
Mesmo a presença de políticos nunca foi noticiada.
O que se passava no Snob não se contava cá fora. E assim foi sempre.
O Sócrates, o Guterres, o António Costa, que todas as semanas ia lá uma vez quando era presidente da Câmara de Lisboa… Nunca se noticiava o que se passava no Snob.
Noites que lhe ficaram na memória?
Acho que nunca tive uma noite que me tivesse ficado na memória. As pessoas, no fim, acabavam sempre por se portar bem. Havia grandes discussões, mas acabava a noite e no dia a seguinte a conversa já era outra.
Assistiu a grandes histórias de amor e desamor.
Sim, vi muita gente a começar relações aqui que deram em casamento e outras a separarem-se. Há uma história muito engraçada com um cliente. Ele já tinha quase 60 anos e começou a namorar com uma rapariga nova que trabalhava na Rua Alexandre Herculano. Um dia, uma senhora chegou à porta, eu não sabia quem era, e deixei-a entrar. Ela foi por ali a dentro, chegou à mesa onde estava o marido com a outra rapariga, sentou-se e ficou a olhar para os dois, como quem diz: ‘apanhei-te’. Não fizeram guerra nenhuma, ela disse qualquer coisa em voz baixa, levantou-se e foi-se embora. E ele ficou com a rapariga nova e continuou a comer tranquilamente. Também havia um casal que, até há pouco tempo, no dia 14 de março, ia sempre ao Snob, pois foi lá, há mais de 20 anos, a primeira saída a dois.
Assistiu a outros divórcios.
Sim, vi muitos. Assisti a algumas zangas entre casais, com a mulher a levantar-se e sair porta fora e deixá-lo lá sozinho.
Chegou a ter uma grande garrafeira, nomeadamente de whiskys. Nos últimos tempos o consumo baixou muito?
Nos últimos tempos praticamente não se bebia whisky. Agora era mais cerveja e vinho. Havia muito poucas pessoas a pedir whisky. As chamadas bebidas brancas foram muito consumidas no Snob entre finais dos anos 70 até 93. Nesse tempo vendíamos whisky que nunca mais acabava. O meu irmão, às vezes, comprava 30 caixas de uma vez. Também vendíamos 30 grades de cerveja por semana, nos últimos tempos não passava das sete, oito grades por semana.
Como era o seu dia-a-dia até à pandemia?
Acordava sempre cedo, como era eu que fazia as compras – só nas bebidas é que tínhamos um distribuidor –, arroz, massas, carne, tudo isso era eu que ia buscar. Normalmente, acordava entre as 12 e as 13 horas. Começava a trabalhar às duas da tarde, a fazer as compras, depois por volta das 18/19 horas jantava. Quando fechava, por volta das três horas, fazia um prego e bebia a minha cervejinha. Quando a Dona Maria era viva ficávamos até tarde a falar, pois não tínhamos pressa nenhuma de ir para casa.
Houve uma altura histórica em que quem estava a trabalhar andava na casa dos 70 anos: a dona Maria, o senhor Azevedo e o senhor Albino.
Eu não, eles eram mais velhos do que eu uns 15/20 anos. A dona Maria nasceu em 1926 e eu em 1946. Eles é que eram quase da mesma idade.
Mas eles acompanhavam-no no prego.
O Azevedo, que já conhecia do tempo do Galo, não, metia-se no táxi e ia para casa às três da manhã, nós é que ficávamos ali, e não tínhamos pressa de ir para casa. Íamos comer o nosso preguinho, beber umas cervejinhas.
E um vinho do Porto?
Não, isso foi uma vez que bebi à tarde e depois ainda acusou às cinco da manhã quando a polícia me mandou parar. À conta disso, tive que pagar uma multa e frequentar umas aulas no Politécnico de Setúbal, para levar umas lições de uma senhora que nos ensinava como andar com o carro na rua. Deixava-a falar, eu praticamente não falava.
Teve de fazer o famoso serviço cívico para não ficar sem carta.
Sim, foi isso. Eu ao jantar, às 18 horas, bebia uma garrafinha de vinho, ou quase, era como o [José] Quitério que dizia que um homem que não bebe uma garrafa de vinho não é homem [risos]. Houve um dia que o Azevedo estava a limpar as prateleiras e viu uma garrafa de Vinho do Porto que estava no fim. Foi esse restinho que me deve ter tramado. O doce do Porto deve ter ficado colado à garganta e foi isso que deve ter acusado. Ultimamente só bebia cerveja.
Foram quase 50 anos com o mesmo horário.
Sim, sim.
E agora o que faz à noite.
Faço a mesma coisa que fazia quando estava a trabalhar. Ainda não me adaptei. Por exemplo, agora às 18/19 horas janto em casa, a minha mulher e o meu filho gostam de jantar a essa hora, por causa dos diabetes. Depois sento-me a ver televisão e começa-me a dar o sono e vou para a cama. Mas por volta das 23/24 horas acordo, e dormir mais, está quieto… Tenho de ir ver o Pé em Riste, futebol…
E não faz um preguinho a essa hora?
Não, mas vou à cozinha, arranjo duas peças de fruta, um iogurte, mais uns bocadinhos de queijo e meio litro de leite ou mais um bocadinho. Vou para a sala comer e ver a televisão, às 2h30/3h da manhã. É a hora que estava habituado no Snob a comer o prego e a tomar um comprimido, que é de 12 em 12 horas. Hoje ainda estou a fazer o mesmo horário. Mas estou a tentar dormir melhor.
Já não são as cervejinhas e o prego.
Não, isso fazia no Snob, mas quando chegava a casa comia a fruta com o leite.
Mas então deitava-se muito tarde.
Sempre às seis da manhã, se fosse antes não conseguia dormir.
Mas agora fica acordado das três às seis?
Normalmente, sim. Só vou para a cama quando a minha mulher se levanta, entre as seis e as sete da manhã. Eu estou a ver televisão e digo, bem agora é a hora de ir dormir.
O Snob tinha, entre várias particularidades, uma em especial: quando a dona Maria começava a estender os guardanapos na sala estava na hora de todos saírem.
A dona Maria é que os punha lá fora. Começava a estender os guardanapos e os clientes já sabiam. Ainda hoje muita gente fala dos guardanapos. Nos primeiros tempos que fui para o Snob, a dona Maria fazia tudo. Fazia a cozinha, lavava à mão os guardanapos, não havia máquina de lavar, isso só apareceu quando eu fiquei lá sozinho sem o meu irmão, em 1990 – ficava num anexo da parte debaixo do Snob.
Assistiu a várias gerações de jornalistas. Qual a diferença dos dias de hoje para os anos 80?
Os jornalistas dos anos 80 eu conhecia-os a quase todos, pelo menos os de Lisboa, nesta nova fornada de jovens jornalistas conhecia poucos. Muitos iam lá e eu não sabia quem eram, o Rogério é que me dizia que eram da televisão. Não vejo muita televisão porque todas falam muito de desgraças. Parece que isto é um país de fantasmas, de tiros e de mortes… Não é assim tanto. Os jornalistas agora são diferentes, é tudo crianças. É só criancitas. Antigamente era muito diferente, eram homens mesmo. Há uma diferença muito grande entre os anos 80 e agora.
Porque acha que o Snob foi decaindo de clientela? Ser proibido fumar também prejudicou…
Há duas coisas que fizeram que a evolução fosse assim. Primeiro, veio a covid-19, e acabei por enterrar ali uma data de dinheiro. Tinha uma coisa que vendi para aguentar o Snob. Pensei que ao fim de alguns meses a covid acabava. E não acabou, demorou três anos. Nesse período, pouco fizemos, poucos clientes tínhamos. E além de termos estado três meses fechados, continuámos com despesas, luz, renda, etc. Depois começámos a trabalhar das sete às 10 da noite, e depois passou das sete às 11. E depois é que passou até à meia-noite. Levei um arrombo do caneco, pois meti lá uma data de dinheiro.
Teve que vender um terreno?
Pois… Era o que tinha. A minha ideia era que o terreno seria para uma necessidade, e foi. A minha filha Cristina ainda me chamou a atenção para vender o terreno, mas para pagar o que estava em dívida, fechar o Snob e levar o resto do dinheiro para casa. Hoje sinto que devia ter feito isso naquela altura.
Além da covid…
Depois veio a proibição do tabaco e foi terrível. Aquilo era uma nuvem de fumo… O pessoal que ia lá fumava todo, e mesmo as pessoas que não fumavam estranharam não haver a nuvem. ‘Está tudo limpinho, não se fuma, mas eu mesmo não fumando gostava de vir aqui para ver esta nuvem de fumo!’. Há muita gente que diz isso. Houve muita gente que desapareceu, o João Botelho foi um deles.
Quem seriam os históricos do Snob?
O Botelho, o João Fragoso Mendes, o Fernando Madaíl, o João Pedro Henriques, esse ia lá todas as semanas, a dra. Ana (psiquiatra), a Constança Cunha e Sá, o Manel da Costa, tudo pessoas que continuavam a ir lá. Isto falando de jornalistas e do João do Botelho, entre outros. E, claro, o senhor Vítor [risos]. Mas ia lá muita gente que não me posso esquecer: o João Braga, o Carlos do Carmo também lá ia quase todas as semanas, o Camané, o Rui Veloso que ia lá muito antigamente.
E o João César Monteiro?
Sim, claro. Esse fez uma cena com o Alface que acabou por ir parar a tribunal.
Alface?
Só o conhecia por Alface porque era assim que o chamavam. O João César Monteiro estava na primeira mesa do lado direito quando se entrava. O Alface estava na outra. Pegaram-se ali um bocado porque acho que viviam no mesmo prédio e acho que houve uma história qualquer que meteu a mulher do César Monteiro que terá ido pedir ajuda à vizinha. Os vizinhos encontraram-se no Snob e o César Monteiro não teve mais nada que fazer, pega num copo e espeta com o copo no outro. Não magoou muito, mas o Alface levou o caso para tribunal.
Viu muita gente sair completamente bêbada?
Não vou dizer que não, mas alguns também já chegavam um bocadinho tocados…
E teve problemas com fiados?
Eu, nesta altura, só tinha um cliente que me pagava ao fim do mês, que me pagou tudo no último dia. Não me deve nada. Mas tive dois clientes que ficaram com uma dividazinha. Eram clientes que já me tinha dado, e ao meu irmão, a ganhar muito dinheiro. Essas pessoas acabaram por morrer, qualquer um deles tinha filhos, que iam jantar com eles. E sabiam que os pais me ficaram a dever, mas nunca me perguntaram quanto é que era.
Como é que sabia o código dos cartões de crédito de alguns clientes? Anotava?
Não, não precisava. Eu tinha uma memória muito boa. Mas, no final, as pessoas optavam por pagar no bar.
Mas sabia muitos números de cor?
Sim, sim. Uns 20. E um ou outro ainda sei.
Deixou tudo no Snob ou levou coisas para casa?
As coisas de comer dei à senhora da limpeza que me chama tio, foi criada pelo meu irmão. O resto ficou lá tudo, eles pagaram. Mas o livro com textos de muitas personalidades, os livrinhos que estavam nas prateleiras ficaram lá, fazem parte do Snob. Também ficou uma fotografia minha, que o novo dono acha que deve estar. Estou ausente, mas estou presente. Vou ter algumas saudades do Snob, durante algum tempo ainda vou sonhar com o Snob, e depois vou ver se me esqueço.
E o quadro da dona Maria?
Esse levou o Manel, o filho.
O Snob estava muito ligado ao jornalismo.
Sim, olhe o jornal O Dia foi cozinhado no Snob, os 24 jornalistas que saíram do DN, no Verão Quente, juntavam-se ali para pensarem o jornal.