Do homem paleolítico às máquinas pensantes

Ao contrário do que eu imaginava, não se trata de um livro sobre a Pré-História e o homem de há não sei quantos mil anos. Não:é um estudo sobre o homem do presente e até do futuro.

Gosto de pensar na minha licenciatura em História da Arte não como um canudo que obtive há vinte e poucos anos e ficou arrumado mas como um processo em curso – uma formação que iniciei lá para finais dos anos 1990 e que continuo hoje a fazer ao meu ritmo.

Um dos livros recomendados nesse distante primeiro ano da faculdade era O Gesto e a Palavra, de André Leroi-Gourhan. Lembro-me de ir à livraria Buchholz, na Rua Duque de Palmela, com a bibliografia que a professora nos tinha passado e de esse ser o único título disponível. Porém, tratava-se de uma edição francesa tão cara que a senhora que me atendeu, vendo o meu ar de jovem estudante, logo calculou (e com razão) que estaria para lá das minhas possibilidades.

Só muito mais tarde vim a adquirir a tradução portuguesa, e logo por uma pechincha, numa feira de rua – embora, como aqui referi na passada semana, lhe faltassem umas quantas páginas…

Terminei recentemente de ler o segundo volume, Memórias e Ritmos, que me surpreendeu por mais do que uma razão. Suponho que algumas das teses de Leroi-Gourhan possam estar um tanto desatualizadas – nos 60 anos que decorreram desde a publicação deste clássico terão sido muitas as descobertas e os avanços na área da arqueologia e da paleontologia. Mas isso pouco pesa, comparado com a clarividência das ideias e as revelações que nos proporciona.

Vejamos, por exemplo, o que o autor diz sobre a ‘invenção’ do tempo:«Esta ‘domesticação’ simbólica traduz-se na passagem da ritmicidade natural das estações do ano, dos dias, das distâncias de marcha, para uma ritmicidade regularmente condicionada pela rede de símbolos, calendários, horários, métricos, símbolos que transformam o tempo e o espaço humanizados no palco em que o homem comanda todo o movimento da natureza». Ou sobre o domínio do espaço:«É normal que a relação refúgio-território seja o termo principal da representação espacio-temporal e que a forma do refúgio corresponda, simultaneamente, às necessidades materiais da protecção e de economia e à articulação entre refúgio e território, entre espaço humanizado e universo selvagem». Isto talvez explique por que temos necessidade de uma casa, mas também sentimos o apelo de explorar sítios desconhecidos. «A segurança oposta à liberdade é também a oposição entre a ordem e o caos […], o próprio fundamento da economia de progresso, que pressupõe a rotina como base de sobrevivência, mas uma rotina quebrada por inovações que a equilibram.»

Para concluir, um vislumbre de quase perturbadora atualidade:«A libertação dos territórios do córtex cerebral […] é total a partir do momento em que o homem exterioriza o seu cérebro motor. Para além desta situação, pouco mais se pode conceber a não ser a exteriorização do pensamento intelectual, com a construção de máquinas que não só emitiriam juízos (etapa já alcançada), como também dariam um tom de afectividade aos juízos emitidos». Faz-lhe lembrar alguma coisa? E ainda:«Seria imprudente responder com demasiada ligeireza que as máquinas nunca virão a apreciar o bem e o belo».

Falámos de tempo e de espaço.Este volume extravasa as suas fronteiras em ambas as dimensões. Não se limita à Pré-História e ao homem de há não sei quantos mil anos. Não, é um estudo sobre o homem do presente e até do futuro. Ora, essa recusa do autor em ficar entrincheirado na sua área de especialidade parece-me admirável. E revela uma ousadia e uma liberdade só ao alcance de quem está tão seguro de si que não teme aventurar-se um pouco pelo desconhecido.