No dia 18 de abril de 1940, Norman Selby deu entrada no Hotel Tuller, em Detroit, engoliu um frasco de comprimidos para dormir à custa de uma garrafa de bourbon e morreu. Deixou uma nota de arrependimento, solitária com ele mesmo: «‘To Whom it May Concern’: durante os últimos oito anos tentei ser útil para a Humanidade e especialmente para os jovens que desconhecem as leis da natureza, entre as quais a do comportamento, da utilização do corpo ou da maneira de comer… Desejo aos meus amigos muita sorte. Desculpem não conseguir suportar mais este mundo louco. Fiquem bem. Norman E. Selby». O E era de Elijah. A sua vida foi tão confusa que caiu na asneira de se casar dez vezes, três das quais com a mesma mulher, uma tal de Julia Crosselman, de nome de batismo Julia Ella Woodruff, nascida em 1874, dois anos depois do seu triplo marido. Conta a lenda (tudo o que diz respeito a Norman E. Selby se transformou em lenda) que infernizavam a vida ao outro e tal forma a polícia lhes batia mais vezes à porta do que o leiteiro. Enfim, por alguma coisa os casamentos celebram-se em altares. Tal e qual como os sacrifícios.
Muita gente nunca ouviu falar de Selby, mas já são menos os que nunca ouviram falar de Kid McCoy. Foi uma personagem tão absolutamente fascinante que até eu, que não sou a favor de repetições, já por aqui falei dele numa crónica qualquer de vá lá saber-se quando. Como Norman Selby não encaixava na sua vida de boxeur de pesos-médios, resolveu adotar a alcunha de Charles Kid McCoy. Foi com esse nome que bateu Joseph Youngs, aliás Tommy Ryan, tornando-se campeão mundial. Estávamos no dia 2 de março de 1896. O gancho de esquerda de McCoy era temível. De apavorar etruscos. Mas tinha uma tendência irresistível para a palhaçada e para a aldrabice que lhe valeu o ódio exacerbado de muitos adversários e até do público. Para aligeirar essa imagem entraria mais tarde em alguns filmes de Hollywood, como The House of Glass, de Émile Chautard, Broken Blossoms or The Yellow Man and the Girl, de D. W. Griffith, ou Tom Mix in Arabia, de Lynn Reynolds. Foi nessa ocasião que se tornou grande amigo de Charlie Chaplin, um dos poucos tipos que lhe achava verdadeiramente piada, mesmo apesar de Charlie ter fama de não achar piada a quase nada que não saísse da sua própria imaginação.
No mesmo ano de 1896, em Maio, aceitou pôr o título em jogo contra um sujeito se intitulava Mysterious Billy Smith, um canadiano nascido William Amos Smith, posteriormente apelidado de Dirtiest fighter of all Time. De pouco lhe serviram os truques sujos quando McCoy lhe aplicou um golpe de baixo para cima nos queixos e o deixou esparramado no ringue com estrelas e passarinhos a brilharem e a assobiarem em redor da sua cabeça. Mas a verdade é que Charles também não era propriamente um desportista amante do ‘fair-play’. Viajou pelo mundo, fazendo-se pagar, e bem, por cada combate, fosse na África do Sul, de onde trouxe uma das suas mulheres, Lizzie, com a qual por acaso não casou porque preferiu trocá-la por Lillian Estelle Earle, viúva de um milionário, Edward C. Ellis, e proprietária de uma fortuna muito considerável, ou na Austrália, onde ao ver-se frente a frente com um latagão aborígene com 120 quilos. McCoy, que não ia além dos 75, e prometera bater-se com quem quer que fosse, percebeu que o seu adversário se apresentava descalço pelo que mandou que atirassem berlindes para o ringue. Não ganhou por KO, mas por escorregadela. A sua aura de trafulha tinha por onde se espalhar. E ainda dizia ele que o mundo é que tinha enlouquecido em seu redor.
No início dos anos 20, Norman Selby mergulhara no alcoolismo. Quando alguém precisava de o ver só o encontrava no fundo de uma garrafa. Metia-se em sarilhos a torto e a direito. Envolveu-se com uma senhora casada, Teresa Mors, e o divórcio desta foi feio como um javali desdentado. Na manhã de 12 de agosto de 1926, a ex-Mrs.Mors foi encontrada morta no apartamento que dividia com Norman. Tinha levado um tiro na cabeça. Selby barricou-se na loja de antiguidades de Teresa com seis reféns e afirmou que a parceira se tinha suicidado. Serviu-lhe de nada. Julgado por um tribunal de Los Angeles foi condenado por homicídio e atirado para as catacumbas da prisão de St.Quentin de onde saiu em precária em 1936. Transformara-se num destroço mas ainda conseguiu um emprego, tão precário como a sua soltura, na poderosa Ford Motor Company. Na sua última entrevista mostrou-se estranhamente lúcido: «Norman viveu sempre na sombra de Kid e nunca conseguiu ser ele próprio. Todas as minhas mulheres casaram com McCoy e não com Selby». Azar o delas.