Já me perguntaram algumas vezes: «Como podem os americanos votar em alguém como Trump?» A resposta costuma ser relativamente simples: «Tu não és americano(a). Não pensas como americano(a), não sentes os mesmos problemas e ansiedades».
Em primeiro lugar, o contexto. A globalização e as alterações do espaço económico em disputa permitiram a integração nesse sistema da China, e dos países do sul global, que trouxe nova distribuição da riqueza.
Esta nova distribuição da riqueza, e da produção, levou à externalização de muitas indústrias e muitas empresas. Quando analisamos a política internacional devemos ter o cuidado de o fazer nos múltiplos níveis de análise da mesma: nos homens de Estado, no Estado em si e no sistema internacional (leia-se a ponderação de poder no mesmo). Nenhum Estado está sozinho. Quando estados como a China ou a Índia aumentam os seus níveis de desenvolvimento, e sua produção e produtividade, enriquecem. O poder é um bem fungível: o poder económico resulta em poder político e este em militar. Isto é o sistema internacional, essa entidade dinâmica, muda sempre. Mudou.
Este movimento de maior abertura, fez com que novas geografias ficassem com muitos empregos, seja em indústrias ligeiras, como o têxtil ou o calçado (nas quais os portugueses sentiram particularmente o ajustamento), seja em indústrias pesadas, como a siderúrgica, ou mais complexas, como a automóvel, que se transferiu para países como o México ou a China.
Tudo isto era previsível, mas não de modo tão rápido. As políticas de substituição de exportações, da China, Índia, Vietname ou Indonésia, aconteceram a uma velocidade vertiginosa – provavelmente como nunca vista na história da humanidade. Hoje são também atores, com marcas próprias, na ‘nova economia’.
Este contexto teve um impacto enorme nuns EUA que não estavam preparados.
A indústria do país perdeu mais de 3 milhões de empregos, desde a assinatura do tratado NAFTA e criação da Organização Mundial do Comércio. Mais de 5,3% dos norte-americanos têm dois empregos para poder ter uma vida digna. A curva de produtividade cresceu exponencialmente, desde meados da década de 1960, ao passo que os ordenados médios não cresceram na mesma proporção, longe disso. Por fim, em 1965, um CEO auferia 20 vezes mais do que o ordenado médio de um trabalhador de uma organização, hoje aufere 344 vezes mais.
Estes números indiciam um país no qual, pela primeira vez, a atual geração sabe que os seus filhos não viverão melhor. O sonho americano, para eles, acabou!
Por isso os ex-trabalhadores da indústria pesada dos estados do ‘rust belt’ ou da indústria automóvel de Detroit votam hoje em Trump.
Isto é na economia. Mas há vida para além da economia.
Um cristão do ‘bible belt’, conservador e tradicionalista, procura quem defenda os seus valores contra os excessos da cultura ‘woke’ e do politicamente correto.
Um judeu, que sente a ambiguidade da posição democrata contra Trump, que aceitou que os montes Golã são israelitas e até mudou a embaixada para Jerusalém, sente-se tentado em fechar os olhos e votar Trump ou, no limite, não votar.
Os norte-americanos da fronteira sul, que viveram durante anos a indiferença dos políticos tradicionais, veneram Trump por ter sido o primeiro a dar verdadeira atenção à imigração ilegal.
Claro está que ser um bilionário, com histórico de predador sexual, acompanhado de um licenciado de Yale a defender a minoria contra o ‘sistema’, é irónico.
A maioria dos eleitores não faz um raciocínio tão complexo na hora do voto, votam apenas no mal menor. Trump percebeu bem as contradições e a complexidade dos EUA, por isso ganhou em 2016, esteve próximo em 2020 e voltou a ganhar este ano. Não porque é bom, mas porque é um bom vendedor numa sociedade em crise, num mundo em mudança.