Camilo Mortágua. Terrorista e herói de dois regimes

1934-2024. O ‘Che Guevara português’ faleceu aos 90 anos.

Um dia, em pleno PREC, Zeca Afonso apresentou Camilo Mortágua ao cineasta Luís Filipe Rocha, como o «Che Guevera português». No mesmo texto em que conta este episódio, o cineasta revela que o próprio lhe terá confidenciado: «Talvez a chave de tudo o que eu fiz, a luta contra tudo o que lutei, esteja afinal apenas no que me impediram de fazer». A luta que irá imortalizar Mortágua foi o assalto ao paquete Santa Maria, o sequestro de um avião comercial, o assalto ao Banco de Portugal e a ocupação da Herdade Torre Bela. Em todas as operações foi um operacional e em todas o que o motivou foi o derrube de um regime e a consolidação de outro que acabou em 1976.

Camilo Mortágua nasceu a 29 de janeiro de 1934 no concelho de Oliveira de Azeméis, e morreu com 90 anos, no dia 1 de novembro. Vivia no Alentejo há 40 anos como agrário numa propriedade em Alvito. A sua luta terminara antes dos anos 80.

Foi protagonista de algumas páginas da História de Portugal, antes e depois do 25 de Abril, através da luta armada ou ação direta, como gostava de dizer. Nunca foi preso pela PIDE mas garantiu que passou a maior parte da sua vida a olhar por cima do ombro. «Nunca passava pelo Restauradores ou descia em Santa Apolónia», foi o segredo que explica para nunca ter sido apanhado. O seu nome voltou à ribalta com a projeção das suas filhas gémeas, Mariana e Joana Mortágua, «hoje são elas que me dão notoriedade e não o contrário», chegou a confessar.

Um lutador contra a ditadura, segundo  Marcelo

Considerado um herói dos revolucionários contra o Estado Novo e um terrorista por outra parte dos portugueses, o Presidente da República Jorge Sampaio optou pela primeira versão e agraciou-o, em 2005, com a Ordem da Liberdade, que distingue «serviços relevantes prestados em defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação do Homem e à causa da liberdade». Em 2024, pela pena de Marcelo Rebelo de Sousa, o regime define o pai das gémeas Mortágua como «um lutador contra a ditadura durante muitas décadas do século passado», conforme se lê na nota de pesar.

Com três anos a família de Camilo Mortágua muda-se para Salreu e em 1946 ruma à capital. Lisboa foi uma desilusão: num pátio no Alto Pina, não tinham água corrente, luz ou esgotos. É nessa altura que Camilo apanha meningite, o que o impediu de começar a estudar, e em 1951, com 17 anos, torna-se um «emigrante económico» em Caracas, na Venezuela. É aqui que inicia a sua luta revolucionária. Não contra o Estado Novo mas contra a ditadura venezuelana. Foi onde aprendeu a ser um «militante revolucionário», como se definia: «Foi lá fora que aprendi o que era preciso para libertar o país. Eu era padeiro, mas não queria continuar a ser», conta em entrevista ao programa O império e os românticos armados.

Começou com um programa de rádio onde anunciava à comunidade portuguesa, já com 50 mil emigrantes, os resultados da jornada futebolística ao domingo. O sucesso do programa abre-lhe portas e foi-lhe pedido que servisse de correio entre profissionais de rádio para a preparação de uma greve geral que levaria à queda do regime venezuelano. Seguiu-se a revolução cubana, e, por fim, Portugal. É na Junta Patriótica Portuguesa (JPP)_que conhece Henrique Galvão, exilado na Venezuela, e Humberto Delgado.

Os assaltos que ficaram na História

O paquete Santa Maria era território português e a sua ocupação é mais do que simbólica. Para orquestrar esta operação entre espanhóis antifranquistas e portugueses, nascia a DRIL- Direção Revolucionária Ibérica de Libertação, em 1959. «Já que não podíamos vir a Portugal ou a Espanha pensámos que uma parte de Portugal podia ir ao nosso encontro, e foi o que aconteceu com o Santa Maria», contou Camilo Mortágua numa das sua entrevistas. O Santa Maria havia largado de Lisboa a 9 de janeiro de 1961 e o objetivo de Henrique Galvão era levar o paquete até à costa africana e, a partir de Angola, derrubar os regimes políticos ibéricos. No paquete seguiam 612 passageiros e 350 tripulantes. Os 24 homens de Henrique Galvão tomaram conta da ponte de comando mas o piloto Nascimento Costa ofereceu resistência e foi morto a tiro. A 23 de janeiro, o navio aproximou-se da costa para desembarcar dois feridos graves sendo localizado pela força área norte-americana. Dias depois teve de fundear no porto brasileiro do Recife. Os revolucionários terminaram assim o seu percurso, pediram asilo político às autoridades brasileiras e o Santa Maria voltou a casa.

Meses depois, em novembro, o mesmo grupo, desta vez com Palma Inácio, rumam a Marrocos com um novo objetivo: desviar o avião Mouzinho de Albuquerque que fazia a rota Casablanca-Lisboa e obrigar o comandante a sobrevoar Lisboa e outras cidades a baixa altitude para lançarem 100 mil panfletos contra o regime de Salazar. Cumprida a missão com sucesso, o grupo regressou a Marrocos e seguiu para o Brasil.

É já em Portugal que Camilo Mortágua encabeça outra operação. No dia 17 de maio de 1967, na Figueira da Foz, dá-se o assalto à sucursal do Banco de Portugal. «Mesmo que a vida acabe ali, temos de ir buscar o dinheiro para fazer a revolução», contou Camilo, um dos assaltantes juntamente com Palma Inácio. O assalto rendeu 30 mil contos – cerca de 10 milhões de euros aos dias de hoje. Vinte dias após o assalto começaram as prisões mas os principais réus foram julgados à revelia. Camilo foi condenado a 20 anos de prisão, a pena mais pesada, e Palma Inácio a 16. A LUAR (Liga de Unidade e Ação Revolucionária) reivindicou o assalto, no entanto, esta só seria criada um mês depois, sob a liderança de Palma Inácio. Quanto ao dinheiro, 80% das notas foi anulada pelo Banco de Portugal, por não ter ainda entrado em circulação. Sobrou o equivalente a 2,5 milhões de euros.

A invasão da Torre Bela

É no PREC que Camilo Mortágua volta à ação. Cerca de um ano depois do 25 de Abril, em 23 de abril de 1975, dá-se a invasão da Torre Bela por cerca de uma centena de agricultores liderados por Wilson Filipe, com o apoio de militares do MFA e à revelia do PCP. Os agricultores da Azambuja pediram apoio à LUAR e foi Camilo Mortágua quem dirigiu as operações. É lá que conhece a mulher com quem teria as filhas gémeas. A ocupação foi registada pelo cineasta alemão Thomas Harlan e é neste documentário que se eterniza o célebre episódio em que Wilson Filipe tenta explicar sem sucesso a um agricultor que a enxada não era dele mas da cooperativa. Mas a cooperativa terminaria ao fim de quatro anos e a propriedade voltou aos duques de Lafões. Camilo Mortágua, em 2005, explicava ao Correio da Manhã que «não é possível fazer vingar uma experiência numa sociedade que caminha noutro sentido». A LUAR, por sua vez, foi dissolvida em 1976.

Em 2017, quando a ‘Gerigonça’ é formada, num texto dedicado a Zeca Afonso no site Esquerda. Net, Camilo Mortágua escreve: «Gostava, que tivesses presenciado a realização do teu maior anseio cultural e político – A ESQUERDA UNIDA GOVERNANDO ESTE PAÍS, – e a memória do teu exemplo como inspiração imortal dessa união. (…) Até sempre companheiro, por cá me aguento na firme esperança de te voltar a encontrar».