O velho rei esgotara, visivelmente, o seu prazo de utilidade. Titubiante, marchava sem destino aparente como que obedecendo apenas a uma voz interior. No debate com o Dragão Laranja, meteu os pés pelas mãos. No dia seguinte, um escriba ‘de referência’ arrolado pelo partido assinou a sua condenação à morte política. Na hora, o casal Obama agarra-o pelagola de arminho e atira-o, sem cerimónias, pela borda fora do sumptuoso iate azul. Exit Biden.
Mas, quem iria substituir o velho rei no combate eleitoral já tão perto? Os oligarcas do partido azul lembraram-se da vice do rei decaído, por todos eles desprezada, mas que tinha uma vantagem: estava ali à mão. E sendo ela oposição única ao detestado dragão, recolheria a simpatia de uma infinidade de jornalistas, comentadores e políticos de confecção vária.
Primeiras páginas de jornais de todo o mundo: eis a mulher providencial que se agiganta para combater o dragão laranja. A receita era simplória, mas talvez funcionasse. Como era mulher, iria recolher os votos das ‘pessoas que menstruam’, as da ‘saúde reprodutiva’; sendo negra, com ela viriam os votos dos negros; tendo ascendência indiana, dessa minoria e de outras sortidas chegariam votos aos molhos. Eram essas as contas dos magnates do partido. Mas, atenção, era essencial que não falasse. E assim ela não falava, passava, ela não discorria, sorria. Começaram a cintilar sondagens, inúmeras sondagens que eclipsavam as do Dragão Laranja. Jornalistas, comentadores, políticos, alguns de primeira, muitos de segunda, muitíssimos de terceira exultavam e não havia metáforas, ditirambos, elegias que lhe fossem negadas. Ia ganhar, era seguro.
Enquanto isso, pelos jornais, televisões, esplanadas, maldizia-se o Dragão, fonte do mal, triturador de crianças, demolidor encartado da democracia. A Besta do Apocalipse, condenado a perder o Armagedon de 5 de novembro.
De uma forma mais rasteira e menos bíblica: a cobertura, a nível nacional e internacional, desta campanha eleitoral dos Estados Unidos foi uma vergonha e foi um embuste.
Uma vergonha, porque jornalistas e comentadores a quem se exigia um módico de objetividade, contenção e decência foram parte empenhada da campanha de Kamala Harris contra Donald Trump.
Um embuste porque foi criado, de todas as peças, um cenário, uma narrativa e dois atores que nada tinham a ver com a realidade: um falso extremista e uma falsa moderada e sondagens que apontavam para uma luta renhida para embalar a campanha vazia da falsa moderada que nada tinha a dizer e a nada respondia do que lhe era perguntado. Fui jornalista durante seis anos. Isto que se passou deixa-me com vergonha retroativa por tê-lo sido. Houve exceções? Há sempre.
No dia cinco, quando o embate com a realidade da vitória em toda a linha de Trump deixou a nu o imenso embuste das sondagens e da narrativa, não houve um honroso pedido de desculpas por parte dos organizadores, atores e comparsas do circo. Pior: multiplicaram-se as queixas contra o povo americano que deu essa vitória esmagadora a quem bem entendeu que a devia dar. ‘Votaram mal’, clamaram eles.
Um dia teremos a democracia liberal e a democracia de jornal: na primeira, votarão os milhões de deploráveis, broncos e fascistas. Na segunda, votarão apenas os jornalistas e os amigalhaços ilustrados. Finalmente, a democracia. Iluminada. Muito.
Vice-presidente da Assembleia da República