Pobreza energética. Portugueses são dos que passam mais frio dentro de casa

Construções antigas com fraco isolamento levam, muitas vezes, a que os portugueses não consigam manter a suas casas quentes. E a agravar a situação está o facto de muitos não poderem ligar os aquecimentos por não conseguirem pagar as contas da luz

Baixos rendimentos, isolamento pobre ou um mau isolamento das casas aliado a um custo elevado da energia são as condições perfeitas para que muitos portugueses tenham frio dentro dos seus imóveis. E os números falam por si. Mais de 20% da população vivia, em 2023, em agregados em que não existia capacidade financeira para manter o alojamento confortavelmente quente, mais 3,3 pontos percentuais do que no ano anterior, segundo os últimos dados revelados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). A percentagem da população em risco de pobreza sem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida (37,3%) representava mais do dobro da restante população (17,4%), e afetava, em especial, os idosos (28,5% para o grupo etário com 65 e mais anos).

E segundo o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) do gabinete de estatística, no ano anterior, Portugal era um dos cinco países da União Europeia em que esta incapacidade era mais elevada, com 17,5%, quase o dobro da média europeia de 9,3%. 

Também a Comissão Europeia revelou que Portugal, em 2023, foi o Estado-membro da União Europeia (UE) com a percentagem mais elevada de pobreza energética, de 20,8% e ao mesmo nível de Espanha, anunciou esta quarta-feira a Comissão Europeia, pedindo mais proteção para os consumidores vulneráveis. E mesmo reconhecendo que a situação de pobreza energética varia “entre os países da UE que promovem medidas para proteger as famílias”, Bruxelas destaca que os Estados-membros “podem agir para garantir o acesso a serviços essenciais e proteger os consumidores vulneráveis de custos excessivos, combatendo diretamente a pobreza energética”.

Ao i, Islene Façanha, da associação Zero, admite que “temos todas as características que levam à condição de pobreza energética e que não se deve apenas às condições financeiras, temos outras, nomeadamente culturais que conduzem a este problema, além da questão de construção em Portugal, em que não há a manutenção do edificado”. 

E a responsável vai mais longe: “O isolamento é o grande problema para que exista frio dentro das casas. Temos uma péssima construção e um péssimo isolamento e por mais que a pessoa ligue o aquecedor não retém o calor e a fatura alta da eletricidade também não ajuda e nem todos ao final do mês conseguem pagar a conta da luz”. 

Também a historiadora Raquel Varela refere que estamos perante um “assunto gravíssimo, um assunto de saúde pública, não é um assunto menor”, afirmando que a maioria das casas não tem um isolamento correto, nem as pessoas com os salários que recebem têm condições para as aquecer”. E acrescenta: “Não gosto do termo pobreza energética porque acho que é um eufemismo, o que se passa é que os salários são muito baixos e as rendas e os lucros da EDP e de outras empresas que atuam como monopólio das energias são altíssimos, o que nos leva a uma situação, em que a maioria da população trabalhadora não consegue ter o mínimo de conforto em casa e no trabalho porque temos muitos trabalhos, nomeadamente por parte de pequenas e médias empresas que não têm dinheiro para aquecer os lugares de trabalho, onde as pessoas passam oito, ou até nove horas de trabalho, sem esquecer que muitos ainda estão em teletrabalho, em que essa fatura da luz tem de ser paga”, salienta ao nosso jornal.

Raquel Varela chama ainda a atenção para o facto de que passar frio dentro de casa nos dias de hoje é muito diferente do que era há 50 anos. “Nessa altura, era muito diferente porque éramos uma sociedade rural. Não se pode comparar uma sociedade rural com uma sociedade urbana e porquê? Porque na sociedade rural, as pessoas trabalhavam no campo e depois viviam todas numa casa em que a cozinha estava sempre aquecida, ora, o frio nas sociedades urbanas é muito grave porque as pessoas têm na sua maioria trabalhos em que não se mexem. Ou as pessoas estão ao computador, que é a esmagadora maioria, ou estão a atender pessoas ou estão nas aulas e provoca efeitos gravíssimos. Foi referido há uns anos que Portugal era dos países com maior elevada taxa de pneumonia e pneumonia mortal na Europa e umas das razões era o frio dentro das casas”, afirma. 

Problema atinge os mais vulneráveis 

Um cenário que, segundo Islene Façanha, é mais assustador junto dos grupos mais vulneráveis, como os idosos ou aqueles que apresentam maiores carências socio-económicas. “Portugal tem uma população idosa muito grande e é uma população que sofre muito com as péssimas condições que têm dentro das casas e isso também tem consequências muito graves em termos de saúde. Portugal fica sempre entre o quarto e o quinto país pior em níveis de pobreza energética ou em risco de pobreza energética na Europa e na Europa é o segundo pior em termos de condições das casas, por exemplo, infiltrações, bolores, etc. Pior que Portugal é o Chipre. Precisamos de políticas sérias e com metas direcionadas e isso não tem acontecido”, diz ao i. 

Aliás, de acordo com a historiadora, Portugal vai tendo cada vez mais uma política de proletarização, em que não existe classe média, mas “uma classe trabalhadora que não consegue pagar não só conforto, mas também saúde”. Desde o século XIX que sabemos que mais de 70% da saúde está associada ao que se chama de determinantes sociais, desde saúde, alimentação, habitação e claro modo de vida”. E acrescenta: “Se uma casa está quente ou não é uma questão absolutamente fundamental para a a saúde e já temos uma classe média que não é média, que foi completamente proletarizada e não consegue ter o mínimo de conforto e saúde e é, por isso, que em Portugal vende-se por todo o lado produtos anti-bolores, assim que começa o outono até ao verão. As prateleiras dos hipermercados estão cheias e isto do ponto de vista da saúde das pessoas é péssimo, mas depois temos uma política existencialista que, em vez de subir os salários e renacionalizar a EDP, a REN e as companhias de eletricidade – é isso que defendo, acredito que é um bem estratégico que deve ser público – o que overno tem feito é subsidiar as camadas mais pobres dos trabalhadores, mas na verdade são um subsídio encapotado às empresas. Se não se controla as empresas, subsidia-se as pessoas. Acho que estas empresas não podem estar em mãos privadas”.

Causas 

De acordo com a Zero, uma das causas para este problema deve-se ao facto de o parque edificado português ser obsoleto, em que aproximadamente 70% foram construídos antes de 1990. “A rápida urbanização e as graves carências habitacionais, da segunda metade do século XX, desencadearam um surto de construção clandestina e autoconstrução, quando os regulamentos de desempenho energético para edifícios residenciais ainda não tinham sido implementados no país”, acenando com construções pouco eficientes, sem manutenção frequente e que, de acordo com a ADENE, 69,5% das habitações avaliadas em Portugal tiveram uma classificação energética entre C e F – as classes menos eficientes, conforme o Sistema de Certificação Energética de Edifícios. 

“O cenário nacional revela incapacidade de manter as casas quentes no inverno e frescas no verão, o que está relacionado com o peso elevado das faturas de energia no orçamento doméstico e com a utilização de equipamentos de climatização de baixa eficiência, como lareiras, aquecedores elétricos ou ventoinhas. Em Portugal, o frio presente nas habitações estará na origem de quase 25 % das mortes no inverno, sendo os idosos os mais afetados”, salienta.

No entanto, a entidade diz que, apesar de todos estes problemas, a maioria das pessoas, em Portugal, negligencia o aquecimento das habitações, sendo considerado normal e aceitável sentir frio em casa durante o inverno. “Segundo estimativas da Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2023-2050, entre 1,8 a 3 milhões de pessoas estejam em situação de pobreza energética, das quais entre 609 mil e 660 mil se encontram em pobreza energética severa, fazendo deste país um dos piores da UE nessa matéria. O que não deveria acontecer porque todas as pessoas têm o direito de viver em condições dignas e que não ponha em causa a sua saúde e bem-estar”, refere. 

E, segundo a ADENE, Portugal sofre há muitos anos desse problema e aponta para maus hábitos na construção. Cenário que não é fácil de alterar, dado o histórico e a dimensão do edificado. Não há uma solução fácil porque, como aponta a Agência, identificar as situações de pobreza energética é uma das questões mais complicadas, pois é algo que não é possível medir de forma mais abrangente, sendo necessário avaliar caso a caso. O importante, acrescenta a ADENE, é mitigar os problemas identificados no ponto anterior, com a necessidade de melhorar a envolvente dos edifícios, com o objetivo de manter a temperatura de conforto interior. É assim importante apoiar a instalação de isolamentos, substituição de janelas e promover uma ventilação adequada. São programas nacionais e locais de incentivo que são necessários para combater esta situação.

Islene Façanha recorda que temos programas de apoio associados ao fundo ambiental. Uns para os grupos mais vulneráveis, outro para edifícios mais sustentáveis e outros que saíram do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas que ficam aquém do que é necessário. “Alguns estão em processo de avaliação, mas não são suficientes, precisamos de muito mais porque as pessoas não vão conseguir fazer renovações que são necessárias se não tiverem apoio. E isso é algo que o Governo deve incentivar cada vez mais de forma a apoiar os cidadãos nessa renovação do parque edificado. É necessário ter apoio, não só financeiro, mas também técnico”.

E de acordo com a responsável, o problema da pobreza energética atinge todo o país, não há diferenças entre norte, sul, interior, litoral. “Uns sofrem mais no inverno e outras zonas sofrem mais no verão. Como é que as pessoas estão a combater este problema? Nas zonas rurais há um grande recurso ao uso da biomassa, mas depois também cria outras questões, como a poluição do ar e a qualidade de ar interior das suas casas. Já nas cidades temos mais o uso dos radiadores que cria o problema da fatura da luz”.

Já em relação ao edificado novo ou em relação aos imóveis que são postos no mercado tanto para arrendamento como para compra, Islene Façanha acena com o certificado energético que é um requisito obrigatório, desde 2013. 

Raquel Varela vai mais longe e não hesita que a solução passa por o Governo levar a cabo “um combate aos lucros energéticos”, mas também reconhece que para “isso era preciso coragem”.

Metas

Numa tentativa de resolver este problema, a Estratégia Nacional de Longo Prazo de Combate à Pobreza Energética estabeleceu várias metas a desenvolver nas próximas décadas. Em relação à população a viver em agregados sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida pretende atingir os 10 % em 2030, 5 % em 2040 e menos 1 % em 2050 (17,5% em 2020). Já quanto à população a viver em habitações não confortavelmente frescas durante o verão quer alcançar os 20 % em 2030, 10 % em 2040 e menos 5 % em 2050 (35,7% em 2012);

Por seu lado, a população a viver em habitações com problemas de infiltrações, humidade ou elementos apodrecidos deverá atingir os 20 % em 2030, 10 % em 2040 e menos 5 % em 2050 (25,2% em 2020), enquanto os agregados familiares cuja despesa com energia deverá representar mais de 10 % do total de rendimentos: 700 mil em 2030, 250 mil em 2040 e 0 em 2050 (mais de 1,2 milhões de agregados em 2016).