Há seis anos, uma pretensa comissão governativa de igualdade para qualquer coisa levantou-me um processo-crime por um artigo escrito neste jornal com o título E se um homem se sentir galinha? Estava-se num período em que se discutiam com muita intensidade as questões de ‘género’. Afirmava-se com calor que, se uma pessoa se sentisse numa pele com a qual não se identificava, devia mudar de pele – e essa mudança devia ser respeitada. Dito de outro modo, se um homem se sentisse mulher e uma mulher se sentisse homem deviam mudar de sexo, tinham todo o direito a ser tratados como tal e a exigir que o Estado lhes proporcionasse os meios para o fazerem. No limite, uma operação de mudança de sexo.
O processo-crime que me foi levantado deu um certo brado, sendo objeto de alguma atenção mediática. Recordo uma emissão do programa Governo Sombra dedicada ao assunto, na qual retive uma frase de João Miguel Tavares que era mais ou menos assim: «Eu até gosto das análises políticas do Saraiva, mas quando se mete a escrever sobre estes temas não percebe nada do assunto».
Em suma: eu vivia noutra época, desconhecia por completo as novas teorias sobre estas questões de ‘género’, e portanto o melhor era estar caladinho.
Qual era a tese que eu defendia? Que uma operação de mudança de sexo é um ato violentíssimo, terrivelmente intrusivo, que não pode ser encarado como ‘solução’ e muito menos medicamente aconselhado. As pessoas que não se sentiam confortáveis com o seu sexo biológico deviam, ao invés, procurar ajuda psicológica ou psiquiátrica – pois seria certamente mais fácil tentarem adaptar a mente ao corpo que tinham, do que mudarem de corpo.
Escrevia eu então: «Se um homem pensar que é uma galinha, os médicos não vão transformá-lo em galinha. Tentarão tratá-lo, levando-o a convencer-se de que é um ser humano. Por que razão, quando um homem pensa que é uma mulher, não se faz o mesmo – tratá-lo – em vez de o transformar num monstro híbrido?».
Até porque ‘mudar de corpo’ é uma mentira. Por mais operações que se façam, é impossível transformar um homem em mulher e vice-versa. Nas pessoas que fazem esta operação, a prevalência de suicídio é superior a 30% e as depressões atingem 50 a 60%. Resumindo: a operação não resolve o problema, amplia-o, com a agravante de ser irreversível.
Foi basicamente por estas afirmações que me levantaram o processo-crime.
Pois bem: já passaram uns bons anos. E um destes dias mão amiga fez-me chegar um excerto de uma mesa-redonda da Rádio Observador onde se discutia exatamente este assunto. E em que o psiquiatra Pedro Afonso, que não conheço, afirmava quase ponto por ponto tudo o que eu escrevi na altura.
Para começar, dizia que o conceito ‘identidade de género’ não tem existência científica. O que existe é o ‘sexo biológico’: um homem é um homem e uma mulher é uma mulher.
Se uma pessoa é biologicamente uma coisa e se sente outra, é porque padece de uma ‘disforia de género’, ou seja, de um problema psiquiátrico que deve ser tratado. E, para exemplificar, o psiquiatra comparava a disforia de género à anorexia nervosa, que nos últimos tempos também tem aumentado enormemente – porque, dizia, a pressão mediática influi nos comportamentos e no modo como os indivíduos se sentem.
As pessoas podem ser magras, magríssimas mesmo, mas sentirem-se gordas – e quererem emagrecer ainda mais. Do mesmo modo, um homem pode ser homem, indubitavelmente homem, mas sentir-se mulher – e querer tornar-se mulher à força, mesmo que tal seja impossível.
O médico psiquiatra adiantava que partidos como o BE defendem que essas pessoas têm direito à sua ‘identidade’, mas estão errados: sendo uma doença, as pessoas não têm o direito de ser reconhecidas na doença – têm é direito a ser tratadas. E a propósito das cirurgias de mudança de sexo, que veementemente repudiava, referia certos atos médicos que foram moda em determinados períodos e depois se mostraram hediondos, como as leucotomias, que se fizeram às centenas ou milhares nos EUA.
Portanto, ao acolher e apadrinhar estes novos conceitos numa disciplina chamada Cidadania, o Estado está a pactuar com uma monstruosidade. Nenhum pai quer que no seu filho sejam incutidas dúvidas sobre se é homem ou mulher. E, se ele tiver essas dúvidas, o que os pais pretendem é que sejam rapidamente desfeitas e não alimentadas.
Esta é uma batalha dos tempos modernos. Se um homem se sente mulher, não deve ir ao cirurgião – deve ir ao psiquiatra.
Vários anos depois, verifico que quem estava errado não era eu mas a tal comissão para a igualdade de qualquer coisa. E quando João Miguel Tavares e os do Governo Sombra me consideraram desatualizado e ignorante sobre o assunto, os ignorantes afinal eram eles, que iam atrás da moda em vez de pensarem pela própria cabeça.
Eu apoiava-me na biologia – e eles na ideologia; eu apoiava-me na realidade – e eles na subjetividade; eu apoiava-me nos factos – e eles nas perceções.
Depois de tudo isto, depois de tudo o que hoje se sabe, só peço aos governantes uma coisa: não façam experiências com as crianças, não lhes metam na cabeça dúvidas angustiantes, considerem os meninos meninos e as meninas meninas e façam tudo o que puderem para que eles e elas se sintam bem como são.
Tornar as crianças cobaias destas teorias do ‘género’ é um crime que o futuro não lhes perdoará.