Acaba de me chegar às mãos a peça que faltava na minha ‘minimalista’ biblioteca japonesa. Trata-se de O Japão – uma antologia de escritos sobre as gentes, de Lafcadio Hearn (1850-1904), um livrinho de capa cor de tijolo editado em 2006 pela extinta Cotovia.
Filho de pai anglo-irlandês e de mãe grega, Lafcadio nasceu na Grécia, foi criado na Irlanda e emigrou à força para a América. Ali viveu na miséria e tornou-se jornalista, após o que passou dois anos como correspondente na Martinica, a colónia francesa nas Caraíbas. Finalmente mudou-se para o Japão, onde se casou com uma japonesa e assumiu o nome de Yakumo Koizumi. Tinha um bigode de cantos caídos e fazia-se fotografar quase sempre de perfil, para não mostrar o olho esquerdo, que estava cego por causa de um acidente sofrido na juventude.
Não exagero se disser que persegui este livro durante anos a fio – sobretudo porque me recusava a dar por ele uma pequena fortuna, quando o seu ‘pendant’ (O Japão – uma antologia de escritos sobre o país) me havia custado um preço irrisório. Como quem porfia mata caça, o tão desejado exemplar lá apareceu.
Lafcadio Hearn oferece através dos seus escritos uma excelente porta de entrada para a enigmática sociedade japonesa. Não é por acaso que Albert Einstein o leu antes de visitar o Japão, em 1922.
Esta antologia sobre as gentes abre com excertos de um diário, ‘Pedaços de vida e de morte’. Espreitemos o início:_«25 de junho. Esta semana a minha casa recebeu três visitas extraordinárias».
Segue-se um texto sobre os cabelos e os penteados das mulheres japonesas – das bebés, das noivas, das mulheres comuns e até das defuntas…
Já ‘Kimiko’ conta a história de uma gueixa marcada por um episódio trágico. Começa assim: «Vista de noite, é uma das ruas mais esquisitas do mundo. É estreita como um portaló, e a escura marcenaria reluzente na frontaria das casas, todas elas comprimidas umas contra as outras […], faz-nos pensar em cabinas individuais em carruagens de primeira classe. […] Algumas das lanternas são ovais, outras cilíndricas; outras têm quatro ou seis faces, e nelas foram encantadoramente escritos caracteres japoneses. A rua é bastante calma – é silenciosa como uma exposição de mobiliário após a hora de encerramento.»
Em poucas linhas, sem grande dispêndio de tinta, eis-nos transportados para aquelas remotas paragens do Oriente.
Além das descrições deste tipo, as próprias histórias proporcionam – para usar a expressão de Wenceslau de Moraes (1854-1929), uma espécie de ‘Lafcadio português’ e contemporâneo do nosso autor – ‘relances da alma japonesa’. Parece-me especialmente revelador aquele conto em que a cabeça de um pobre homem, depois de cortada, rola na areia e vai morder uma pedra para mostrar a sua cólera.
Visitas extraodinárias, penteados requintadíssimos, uma gueixa virtuosa marcada por um desgosto e uma cabeça que morde as pedras. Não há dúvida nenhuma de que existe entre os japoneses uma forte propensão para o bizarro. E Lafcadio Hearn, o jornalista cego de um olho em quem circulava uma invulgar mistura de sangues, conseguiu captá-lo em todas as suas nuances estranhas e sedutoras.