Duas ministras

Os casos de Ana Paula Martins e de Margarida Blasco são muito diferentes. Um envolve mortes, o outro tem que ver com uma afirmação. Um ultrapassa os poderes da ministra, o outro diz respeito a dificuldades de comunicação. E para casos diferentes tem de haver soluções diferentes.

Duas ministras têm estado debaixo de fogo: a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e a ministra da Administração Interna, Margarida Blasco. A primeira em consequência de mortes provocadas por atrasos do INEM, a segunda por uma declaração sobre o direito à greve na PSP. A questão do INEM é muito grave, mas não é nova. Num tempo em que a tecnologia faz milagres, é incompreensível que numa situação de vida ou de morte uma pessoa possa estar uma hora à espera de uma ligação telefónica para o 112.

Todos sabemos o suplício que representa uma chamada para a MEO ou para a NOS, quando a box se avaria e ficamos sem televisão; imagino o desespero que representará uma situação semelhante quando está em causa, não o serviço de TV, mas a vida de um familiar.
Isto não pode acontecer.

A situação tem de ser urgentemente resolvida – e talvez de uma forma estruturalmente diferente.

Também deveríamos refletir sobre o direito à greve em certas instituições. E não se fale de ‘serviços mínimos’: quando estão em jogo vidas humanas, não se pode falar em serviços mínimos – exigem-se ‘serviços máximos’.
Mas nada disto é culpa da ministra, e a exigência da sua demissão não faz sentido.

É mesmo chocante fazer-se política com isto.

Há muitos anos, numa crónica sobre a demissão do ministro Jorge Coelho após a tragédia de Entre-os-Rios, escrevi mais ou menos o seguinte: «Em Portugal, quando sucede uma catástrofe, demite-se o ministro e os problemas ficam por resolver; ora, devia ser ao contrário: tentar resolver os problemas e depois pensar no ministro, caso tivesse alguma responsabilidade no caso».

Curiosamente, um destes dias, Luís Montenegro respondeu exatamente do mesmo modo a uma pergunta sobre a eventual demissão da ministra da Saúde.

Caso diverso é o da ministra da Administração Interna, Margarida Blasco. Entre portas, admitiu com todas as letras o direito dos agentes da PSP à greve. Ora, num tempo tão sensível, em que a PSP tem sido objeto de tanta polémica, em que o Governo e a Polícia têm de fazer os possíveis e os impossíveis para estar do mesmo lado, o que levou a ministra do setor a levantar um assunto que só os podia dividir?

Num tempo em que a PSP estava debaixo do fogo da esquerda, que lhe chamava todos os nomes, o que levou a própria ministra de um Governo do centro-direita a vir desenterrar um assunto que só favorecia a esquerda?
Num tempo em que se exigia o máximo cuidado e contenção por parte dos responsáveis governamentais, o que levou a ministra a reabrir, por sua própria iniciativa, uma ferida que parecia fechada?

Ninguém conseguiu perceber.

Até porque, a aumentar a estranheza da situação, nem a ministra nem sequer o Governo têm competência para mexer no estatuto da PSP e conceder-lhe o direito à greve.

O estatuto da Polícia, aprovado em 2015, foi um dos raros momentos em que, no Parlamento, houve unanimidade em Portugal.

A questão é considerada tão delicada e de tão grande importância que, para o estatuto da PSP poder ser modificado, exige-se o voto a favor de dois terços dos deputados, tal como acontece na Constituição.

Ora, o que levou a ministra a dar a entender que estava aberta a discutir o assunto?

Os meus leitores sabem que muito raramente falo em demissões de responsáveis políticos.

Mas neste caso é um enorme risco ter num Ministério importante um responsável com tão grandes dificuldades de comunicação e que pode fazer declarações incendiárias.

Margarida Blasco pode ter muitas qualidades, ter um grande currículo, mas é um evidente erro de casting.

Permitam-me, para amenizar, uma referência histórica. Nas naus das Descobertas, havia um corpo militar que garantia a disciplina a bordo e fazia a tripulação respeitar as ordens do capitão. Se esse corpo desobedecesse, o capitão ficava sem meios para exercer a sua autoridade – e, em caso de motim, o navio tornar-se-ia ingovernável. Esse corpo militar tinha, pois, de ser absolutamente leal ao capitão, e de obedecer fielmente às suas ordens.

Nas nossas sociedades, esse corpo chama-se Polícia.

Tendo o monopólio da força, uma greve da Polícia tornaria o Governo impotente e incapaz de se fazer obedecer.

Não havendo ninguém para a substituir, seria impossível evitar a desordem e o caos.

Uma ministra que não pensou maduramente sobre isto – que é elementar -, não percebe bem o lugar onde está.