Assédio no jazz. ‘Ainda bem que não me encontrei com ele’

No princípio do mês, Liliana Cunha acusou o pianista João Pedro Coelho de violação, abrindo a caixa de Pandora do assédio no jazz português. Já são mais de 50 denúncias contra o músico enviadas para o email criado pela DJ. O artista garante estar inocente.

Ainda bem que nunca me encontrei com ele», diz Beatriz ao Nascer do SOL. «Quando há uns dias percebi o que estava a acontecer, gelei», continua. «Começou com a minha melhor amiga. Lembro-me de estarmos no quiosque das Portas do Sol quando me mostrou uma fotografia dele. ‘Ando a conversar com este rapaz. Convidou-me para ir às jazz session hoje’, disse-me. Ela não lhe achava graça – até porque era insistente nos convites –, mas eu achei. E fomos», conta. «Tinham combinado que, quando tivesse um momento – num dos intervalos do concerto –, nos vinha conhecer. Mas lembro-me que havia quase uma fila de espera para o cumprimentar. Estranhei… Por mais que no mundo do jazz o conhecessem, não era propriamente uma figura pública. Ficámos a observar e percebeu-se perfeitamente que o convite se tinha estendido a outras raparigas», continua. «Ficámo-nos por aí. Ela desagradada – porque percebeu que não tinha sido a única convidada –, e eu no meio do ‘filme’. Mesmo assim, decidimos que ficaríamos para assistir ao resto da jam. Isto aconteceu há dois anos», revela Beatriz.
No ano passado, a mesma recebeu uma mensagem no Instagram. «Penso que é assim que ele faz… É o seu modus operandi… É bom falante, inteligente e sabe bem como aproximar uma mulher», admite. «Só depois de algumas mensagens percebi que era o mesmo rapaz com que a minha melhor amiga tinha falado e que eu tinha conhecido no Hot Club», conta. «No princípio, foi muito cordial. Partilhávamos o gosto pela poesia e pela música. Quando percebi quem era, perguntei-lhe se não se lembrava da minha melhor amiga e de o termos ido conhecer. Respondeu-me que ‘não’. Ao mesmo tempo, metia gosto nas publicações do Instagram das duas. Aliás, comentava e reagia às publicações ao mesmo tempo. E nós a ver… Não escapava uma», garante.

Começou a ser insuportável
«Como estava solteira, ia trocando algumas mensagens, mas a insistência para nos encontrarmos acabou por me afastar. Começou a ser insuportável», explica. «A interação acabou quando lhe disse que estava comprometida e para estar mais atento às conversas e às pessoas com quem fala, porque o mundo é pequeno», acrescenta.
Beatriz fala do pianista João Pedro Coelho que recentemente foi acusado de violação, numa publicação nas redes sociais, pela DJ Liliana Cunha, de 32 anos, mais conhecida como ‘Tágide’. Uma noite, quando foi ao encontro do pianista, estabeleceram termos para se envolveram sexualmente, sendo uma das regras de Liliana Cunha o uso do preservativo. O pianista terá aceitado as condições. Contudo, supostamente, quebrou a regra.

Mais de 80 denúncias, 50 contra João
Depois da sua partilha, as denúncias multiplicaram-se e, o número de mensagens que recebeu de outras mulheres, levou a artista a apresentar queixa na PSP e a criar um canal de denúncias via e-mail. As histórias são todas semelhantes. A queixa foi encaminhada para o Ministério Público, onde terá de se dirigir daqui a três semanas, tendo-lhe sido atribuído o estatuto de vítima. As denúncias enviadas para o email referem-se maioritariamente ao meio musical e 80 mensagens já estão validadas, com 18 nomes de abusadores referidos, sendo que a maioria das mensagens (50) refere-se a João Pedro Coelho. Entre elas, algumas são menores.
«Nunca me cheguei a encontrar com este tipo. As mensagens dele foram completamente nojentas, tive de o bloquear por me sentir assediada com o conteúdo das mesmas»; «Obrigada pela partilha! Não conheço uma mulher que tenha tido uma experiência positiva com este tipo»; «Também já falei com ele e bloqueei-o quando me apercebi do teor das conversas. Não estás sozinha!»; «Pelo que vejo aqui, ele lançava a rede em todo o lado. Eu e a minha melhor amiga, há uns anos, recebemos a mesma pick up line com a desculpa de ‘não resistir a meter conversa e ser mesmo um impulso’»; «Infelizmente também fui abordada por ele, mas felizmente apercebi-me do que se tratava antes de dar para o torto», lê-se em alguns dos mais de 260 comentários na partilha de Liliana.
«Ele começa por seguir as raparigas nas redes sociais, depois reage aos stories com emojis. Depois, manda mensagem. Seguem-se depois os convites para os seus concertos com a promessa de que ‘paga uns copos’», detalha Beatriz. «Chama o mesmo a todas. Tinha também o hábito de enviar mensagens tardíssimo. Numa delas, enviada perto das quatro da manhã diz: ‘Gostava muito de te ver estes dias. Tenho a certeza que nos vamos dar bem’. ‘Se estás à espera que mantenha conversas virtuais ad aeternum, não é o meu estilo. A declaração de interesse está feita. Se quiseres vemo-nos, cara a cara’, escreveu numa outra mensagem», revela ainda Beatriz.
O jazz e o fado são os géneros musicais com mais casos de denúncias de assédio no email criado por Liliana. Recentemente, começaram a surgir outros nomes do meio cinematográfico, segundo Liliana Cunha. «O meio musical é realmente misógino. Mas temos recebido várias denúncias de nomes do mundo do cinema. É realmente muito grave!», revela a artista.
A alegada violação ocorreu em maio de 2023, tal como escreveu na sua publicação no Instagram no princípio do mês. «Encontrei dentro de mim a força que precisava para contar a minha história, apoiada também muito nas mensagens que estava a receber que visavam o João. Não tinha noção do quão viral ia ser… Fiz tudo numa perspetiva de dever cívico. Sabia que tinha as coisas bem resolvidas com as pessoas que amo. Sabia que quaisquer proporções que tomasse, isso não me iria impactar. Mas claro que a nível psicológico me tem afetado imenso. Por isso é que me tenho focado na música», explica.

Queixa no MP
«A partir do momento em que apresento queixa, esta segue para o Ministério Público e inicio uma campanha pública no sentido da awareness (consciencialização) sobre o assunto. Aí já senti que mais mulheres se chegaram à frente», adianta com o desejo que mais mulheres tenham a iniciativa de apresentar queixa-crime. «Estamos a providenciar ajuda jurídica e alguma literacia jurídica para que isso aconteça e estou a gerar uma campanha pública em relação ao stealthing (remoção do preservativo sem consentimento), para ser reconhecido como um crime», acrescenta Liliana.
Horas depois de partilhar a sua história, Liliana recebeu um e-mail de uma advogada a negar a prática de qualquer crime pelo pianista e a exigir a eliminação «imediata» da publicação online, sob ameaça de avançar com uma queixa-crime por «difamação e devassa através da internet». Perante a repercussão que o caso começou ter, João Pedro Coelho – antigo professor na escola de jazz do Hot Clube – já reagiu nas redes sociais e reclama a sua inocência. «Para reposição da verdade, e reparação da ofensa ao meu bom nome e dos danos morais e materiais já causados ao meu bom nome pessoal e profissional, usarei os meios legais que estão à minha disposição», escreveu.
Segundo Maria João Faustino, é importante compreender esta sucessão de denúncias: «Havendo um medo generalizado de falar sobre a violência sexual (medo do descrédito, de represálias) quando uma denúncia quebra o silêncio, gera por vezes um efeito de solidariedade entre vítimas e de maior confiança para que outras vítimas reportem, pela perceção de que não estão sozinhas. Esta é a dinâmica basilar do #MeToo», diz a investigadora na área da violência sexual, atualmente no projeto UnCover.
«As experiências reportadas são diversas: violação, assédio sexual, stalking (perseguição, sobretudo por meio digital, através de mensagens insistentes e não solicitadas) e stealthing (remoção do preservativo sem consentimento). É importante nomear e identificar estas várias formas de violência sexual. Nomeadamente, o stealthing, a remoção do preservativo sem consentimento, é ainda muito desconsiderada, menorizada e desconhecida em Portugal», alerta. O stealthing constitui uma forma de violência sexual, por violar a autonomia corporal e autodeterminação sexual da pessoa vitimada. «Importa sublinhar que o consentimento é necessário para qualquer ato sexual. Este ato é criminalizado em diversas molduras penais», frisa.
De acordo com Maria João Faustino, o número expressivo ilustra «a necessidade de meios de denúncia». «Os mecanismos de denúncia e canais de reporte formais, quando existem, são normalmente ineficazes, não inspiram às vítimas a confiança necessária para denunciar em segurança», lamenta
O caso recente espoleta também «uma discussão necessária sobre as dinâmicas de género (indissociáveis da violência sexual) no meio musical, em particular (mas não exclusivamente) no jazz». «A reação do pianista João Pedro Coelho, em comunicado, agrega vários elementos típicos das reações dos acusados. Além da absoluta negação das acusações que lhe são imputadas, o pianista refere que usará ‘os meios legais’ ao seu alcance para ‘reparação’ do seu bom nome. Esta alusão aos meios legais remete para uma questão de suprema importância no contexto pós-#MeToo. Os processos por difamação funcionam muitas vezes como forma de silenciamento das vítimas-sobreviventes, efetivando, na prática, uma criminalização da denúncia», detalha.

Hot Clube afasta-se do caso
Sabe-se que o Hot Clube de Portugal (HCP) vai abrir uma investigação interna para estudar os eventuais casos de assédio. Pouco tempo depois da «bolha rebentar», em comunicado, o HCP informou que «o músico em causa cessou funções como professor da escola do Hot Clube no ano letivo de 2022/2023». «Em caso algum (a escola) foi cúmplice ou pactuou com comportamentos menos próprios por parte dos seus professores», lembrando que foram identificadas «duas situações de assédio» anteriores, no ano letivo de 2021/2022, e que levaram ao afastamento de outros dois professores.
Como consequência desse processo, foi criado um código de conduta, assim como um canal de denúncias e gabinete de apoio ao aluno. Além disso, a direção da escola admitiu não ter conhecimento de nenhuma queixa ou denúncia em curso.
«Quero deixar uma mensagem de apreço a todas as mulheres que me vêm falar, que se sentem vulneráveis e também deixar um apelo aos homens, para que não se silenciem porque isto não é uma caça às bruxas e eles também têm voto na matéria», remata Liliana Cunha.