Em América (livro que teve a sua edição original em 1985), Jean Baudrillard oferece um testemunho astucioso, às vezes, feroz, outras meio alucinado de uma nação infinita, irredutível a qualquer síntese. Ele sabe-o, mas não foi isso o que o deteve. Há algo de fabulosamente temerário neste confronto com um território-miragem, uma geografia absurda de contrastes, cujas paisagens absorvem tudo, e para o qual foi preciso inventar a velocidade dos automotores de forma a conjurar a sua horizontalidade absoluta, essas distâncias infindáveis, de forma a assumir uma perspetiva quanto àquela monumentalidade geológica que depressa assume um cariz de ordem metafísica.
A certa altura, Baudrillard convoca a estética do desaparecimento de Virilio diante da imensidão das planícies desérticas norte-americanas para fazer notar como essa forma alimenta o sentido de uma forma depurada da deserção social: “A inumanidade do nosso mundo ulterior, associal e superficial, encontra aqui, de imediato, a sua forma estética e a sua forma extática. Pois o deserto não é senão isso: uma crítica extática da cultura, uma forma extática do desaparecimento. A grandeza dos desertos consiste em que eles são, na sua aridez, na sua secura, o negativo da superfície terrestre e o dos nossos humores civilizados.”
E depois oferece-nos uma dessas metáforas que concretizam o grande fulgor deste seu modo analítico, que vive de sínteses arriscadas, extravagantes, mas inquisitivas e reveladoras, dizendo que o deserto aparece como uma “rede luminosa e fóssil de uma inteligência humana, de uma indiferença radical”. E é sobre essa vastidão que a velocidade se impõe como “o triunfo do efeito sobre a causa, o triunfo da instantaneidade sobre o tempo como profundidade”. Isso leva-o a falar numa metafísica da velocidade. Para Baudrillard é o espaço aquilo que confere envergadura mesmo à insipidez dos subúrbios e das pequenas e desoladas povoações que vão salpicando aquele território. O sociólogo e filósofo francês conduz por San Antonio, Salt Lake City, e ao chegar a Los Angeles sente a intoxicação da autoestrada: “Conduzir é uma forma espetacular de amnésia. Tudo é para ser descoberto. Tudo é para ser apagado”.
Essa horizontalidade dos espaços abertos depois choca contra a verticalidade barroca das grandes metrópoles. Ao passar por Nova Iorque, Baudrillard refere como a centralidade e excentricidade desta cidade só podem dar-lhe o delírio do seu próprio fim. Contempla o seu expressionismo violento, notando como toda ela cultiva coletivamente do frenesim técnico dessa verticalidade, e na aceleração da banalidade, na insolência do sacrifício humano à circulação pura. Neste contexto, diz-nos que a violência modela todas as relações… “A própria sexualidade está, de certo modo, superada como modo de expressão – mesmo que ela esteja por toda a parte em evidência como espetáculo, já não tem tempo de se materializar em relação humanas e amorosas, volatiliza-se na promiscuidade de todos os instantes, nos múltiplos contactos mais efémeros.”
Se nuns momentos, parece emitir juízos de uma severidade brutal, Baudrillard está menos interessado em produzir orações fúnebres do que em excitar o nosso aparelho contemplativo, a nossa capacidade de refletir e rejeitar as suas impressões e notas de viagem. Se, há quatro décadas, ele apontava o dedo a aspetos da sociedade norte-americana nos quais podíamos intuir os caracteres da nossa danação coletiva, ao mesmo tempo ele não deixava de admirar aquela América sideral da vã e absoluta liberdade dessas autoestradas a perder de vista, esse convite à deserção e ao apagamento de si mesmo. Ele via ali uma cópia sem modelo, nem sonho nem realidade, uma utopia realizada, a “única sociedade primitiva que resta”, uma nação que por não estar assombrada pelo passado, consegue desenraizar-se continuamente, e fazer do futuro a sua promessa, estando simultaneamente dividida e unida pela sua impressionante diversidade de povos e paisagens. No fundo, este é um livro de viagens que nos ensina o gozo da ambivalência, de não abdicar dessas sugestões radicais que acompanham as descrições vivas, exigindo uma linguagem ágil e um agudo poder de observação. Esta obra consegue igualar o desafio da América, nas suas representações e paradoxos, criando um género sujo, híbrido, alvoroçado, que trabalha a partir daquela matéria fraturada, com a mesma imprecisão e desmesura que lhe é própria. Com esse resíduo de ambivalência, Baudrillard serve-nos um retrato impiedoso de uma nação que nos faz cambalear entre os elementos de horror e sedução. Um estilo de vida que não cabe nos conceitos habituais, que se insurge contra a melancolia das análises europeias, desde logo porque, como nos diz Baudrillard há nele uma “espantosa negação da cultura”. Mesmo a sua violência não aceita nem oferece justificações, é autista, reativa. “Nada de crimes passionais, mas estupros, ou esses homicídios de uma dezena de mulheres num par de anos, antes que o assassino seja descoberto. Violência fetal, tão gratuita quanto uma escrita automática, e que evoca, mais do que uma agressividade real, a nostalgia dos antigos interditos ou tabus”…
«Aqui foi realizada a utopia e a anti-utopia: a da contra-razão, da desterritorialização, da indeterminação do sujeito e da linguagem, da neutralização de todos os valores, da morte e da cultura …” E, logo depois, para deixar o leitor sem capacidade de contrariá-lo, ele mesmo exprime a perplexidade e salta sobre ela: “Mas então, e isso é uma utopia realizada, isso é uma revolução bem-sucedida? Sim, é! (… ) Santa Bárbara é um paraíso, a Disneylândia é um paraíso, os EUA são um paraíso. O paraíso é o que é, eventualmente fúnebre, monótono e superficial. Mas é o paraíso. Não existe outro…»