Tive em tempos a pretensão, entretanto abandonada, de escrever um livro de contos sobre homens e animais que reunia alguns episódios verídicos que fui ouvindo aqui e ali. A linha condutora eram as relações que transcendiam a barreira – real, convencionada ou imaginária – que nos separa das outras espécies. Havia a história dos pescadores chineses que usam corvos marinhos na faina e que para os domesticarem dormem com as crias nas primeiras semanas de vida destas, numa simbiose perfeita; a história de um caseiro que conseguia comunicar com os animais e que nunca tomava banho – certa vez em que foi obrigado a tomar, apanhou uma pneumonia e quase ia desta para melhor; a história de um polvo do Oceanário que se apaixonou pela sua tratadora, que graças aos seus cuidados conseguiu recuperá-lo quando ele se encontrava doente, mas, ao regressar ao seu país, provocou-lhe um desgosto tal que ele fugiu do aquário e acabou por morrer; e ainda a história de um pombo com uma asa partida que foi tratado por uma família mas acabou dentro de uma panela, transformado numa bela canja. Repito: todas estas histórias são reais.
Esqueci-me de referir talvez a mais curiosa, que me contou o meu amigo Jorge Sande Lemos quando trabalhávamos no Mosteiro dos Jerónimos. O seu tio, que julgo que era diretor dos caminhos de ferro de Angola, certa vez em Benguela foi convidado para jantar em casa de um português lá radicado, provavelmente um negociante. Aceitou de bom grado. Mas, p ara que ele não fosse apanhado de surpresa, o homem explicou-lhe que tinha como criado um chimpanzé, se não me engano, que ia servir à mesa. O convidado que não estranhasse – mas, sobretudo, que nunca se risse dele, pois isso poderia levar a um comportamento agressivo por parte do animal. Tanto quanto sei, o chimpanzé serviu mesmo à mesa e até estaria fardado. O convidado comportou-se com a naturalidade possível e a refeição passou-se sem sobressaltos.
Ainda acalentava o projeto de escrever esse livro de contos quando li O Livro de San Michele, de Axel Munthe (1859-1949), o médico e psiquiatra sueco, discípulo de Charcot e de Pasteur, que havia quem considerasse que tinha poderes de cura sobrenaturais. E recordei-me da história do chimpanzé que servia à mesa e do aviso do seu proprietário ao cruzar-me com esta passagem: «Os macacos gostam de rir de nós, mas a menor suspeita de troça da nossa parte irrita-os profundamente. Nunca devemos rir-nos de um macaco, porque não o podem suportar».
Um dia, quando entrevistei Maria da Paz, tratadora de primatas do Jardim Zoológico há cerca de trinta anos, perguntei-lhe se era possível um chimpanzé servir à mesa – não que duvidasse da palavra do meu amigo! «Provavelmente teria um chimpanzé vestido como criado e se calhar levou alguma coisa à mesa», respondeu-me. Portanto sim, era possível. Quanto ao facto de os macacos não gostarem que nos riamos deles, tem uma explicação simples: «Há uma coisa que é mostrar os dentes, que para nós é rir e para eles é um comportamento agressivo. ‘Estou-te a mostrar os dentes porque te vou morder. Vê como tenho dentes grandes para te morder’. Portanto, se eu me rir para ele, ele vai-se comportar como com os outros da sua espécie, pode-se tornar agressivo.»
Só tempos mais tarde vim a descobrir que Axel Munthe tinha escrito também um livro chamado Homens e Bichos, o título que eu gostaria de dar ao meu. O médico sueco era um grande amante e defensor dos animais – tendo chegado ao ponto de comprar uma montanha por trás da sua villa em Capri para aí fazer um santuário para os pássaros. Entre os seus animais de estimação contavam-se vários cães e gatos, que passeavvam livremente entre as estátuas da Antiguidade que Munthe também colecionava, uma coruja, um mangusto e até um babuíno chamado Billy. Este, ao contrário do chimpanzé de Benguela, portava-se mal, tinha um problema com o álcool e não consta que servisse à mesa.