“Fiz o possível para não ser eu o chefe operacional”

Entrevista de José António Saraiva a Ramalho Eanes.

Numa entrevista única, feita por escrito, Ramalho Eanes esclarece aspetos capitais do 25 de Novembro. Conta que saiu de casa armado com uma pistola, narra em pormenor o que se passou em Belém na reunião com Costa Gomes, afirma que a guerra civil esteve iminente, e pensa que Álvaro Cunhal recuou quando percebeu que a sublevação não podia vencer. E adianta uma declaração inesperada: que fez o possível para não ser ele o chefe daquela operação.

Senhor general: em que circunstâncias os moderados decidiram sair à rua no dia 25 de Novembro? Que informações tinham?     
Antes de responder à sua pergunta, deixe-me dizer-lhe que, para me preparar para as suas questões e, assim, poder relembrar, com exactidão, o que se passou há 49 anos, fui reler um livro, muito interessante, intitulado 25 de Novembro: Reflexões, coordenado pelo Dr. Manuel Barão da Cunha e editado pela Âncora, em 2016, que reúne as intervenções proferidas pelos participantes num encontro que teve por objectivo reflectir sobre o 25 de Novembro. As minhas respostas são, pois, baseadas nos testemunhos dos diversos intervenientes.

Passo, agora, a responder à pergunta que me colocou.

De há muito se temia uma acção armada desencadeada pelos pequenos partidos e movimentos da Esquerda revolucionária, tacticamente suportados pelo PCP e apoiados pelo bloco das unidades do Exército, que, estando empenhados na ‘revolução socialista’, apoiaram Otelo sem reservas, juntamente com os pára-quedistas.

Para responder a essa eventualidade, criou-se, em finais de Julho de 1975, um grupo de planeamento (grupo militar), que acompanhava, de perto, a situação, durante o agitado Verão de 1975. Era um grupo informal, de oficiais moderados, estritamente ligado ao ‘Grupo dos Nove’, cujo documento foi apresentado, ao País, a 7 de Agosto de 1975.

Era princípio essencial deste grupo que a resposta apenas teria lugar para fazer face a uma iniciativa revolucionária, sendo importantíssimo que a acção fosse conduzida num quadro institucional, sob o comando do Presidente da República, como efectivamente viria a acontecer.

Para evitar essa acção armada, a 21 de Novembro de 1975, é retirado, a Otelo Saraiva de Carvalho, o comando da Região Militar de Lisboa, por decisão tomada numa reunião realizada, na Presidência da República, entre o Presidente Costa Gomes e o Conselho da Revolução.

Perante a reacção negativa de algumas unidades da Região Militar de Lisboa, que se recusaram a aceitar Vasco Lourenço como seu comandante, o Presidente da República aceitou, a pedido de Otelo, convocar uma reunião extraordinária do Conselho da Revolução para a tarde do dia 24 de Novembro, para confirmar ou infirmar a decisão de 21 de Novembro. Essa reunião terminaria às 4h30 da manhã, já de dia 25, confirmando a decisão anterior.

Acabada a reunião, Otelo passou pelo COPCON [Comando Operacional do Continente], para anunciar, aos militares ali presentes, a confirmação da decisão do Conselho da Revolução.

Nessa reunião, Costa Martins, capitão da Força Aérea, garantiu, sem ambiguidade, que os ‘páras’ não aceitavam esta situação e iriam ocupar as bases aéreas. Na altura, os oficiais da Força Aérea presentes terão sossegado Otelo, dizendo-lhe que se tratava apenas de uma questão interna da Força Aérea, dos ‘páras’ contra Morais da Silva [chefe do Estado-Maior], e nada mais.

Segundo o próprio Otelo relata no livro referido, por volta das 5h30, os ‘páras’ ocuparam, de facto, várias bases aéreas, o Comando da Região Aérea e o Estado-Maior da Força Aérea.

Perante esta situação, o Presidente da República solicitou a comparência de Otelo em Belém, tendo-se reunido, com ele, por volta das 14h30 do dia 25 de Novembro. Segundo Otelo, o Presidente da República perguntou-lhe qual a sua opinião sobre os acontecimentos e o que ele considerava aconselhável fazer. Respondeu-lhe Otelo – e cito – que: «Achava a situação grave e delicada e que havia que agir com cautela, com o objectivo de evitar qualquer incidente que pudesse descambar numa batalha séria. Assim – continuou Otelo –, predispus-me a ir junto dos ‘páras’, para os convencer a regressar ao quartel, abandonando as bases e instalações ocupadas. Costa Gomes ripostou que estava inteiramente de acordo comigo, que o fundamental, naquele momento, era evitar a todo o custo o deflagrar de uma guerra civil e que, nesse sentido, e partindo do seu sentimento de que o capitão Costa Martins tivesse alguma coisa a ver com a acção dos ‘páras’, já o tinha mandado chamar ao palácio [de Belém]. Tinha-o incumbido de apresentar aos ‘páras’ uma proposta que consistia na desocupação imediata das bases e outras instalações, regresso à sua unidade e garantia de que no dia seguinte ele, Presidente [da República] e CEMGFA, iria comigo, comandante do COPCON, a Tancos, para os informar, em parada, que deixavam de ser tutelados pelo CEMFA e passavam a ficar subordinados ao comando do COPCON. Nestas condições, já não se tornava necessária a diligência que eu me propunha fazer junto dos ‘páras’, ficando em Belém, juntamente com os outros conselheiros, em reunião permanente do CR. Perante tão boas notícias, rejubilei e dei o meu apoio total ao Presidente. E aguardámos, ansiosos, o regresso de Costa Martins da sua missão, que não apareceu, nem nunca mais disse nada. Pelo que, pelas 16 horas, perante a pressão dos ‘Nove’ em Belém e de Eanes e o seu estado-maior no Regimento de Comandos da Amadora, sem argumentos para os contrariar, Costa Gomes determina o estado de emergência e dá luz verde para o desencadear do ‘plano de operações’ de Eanes e seu estado-maior».

Socorro-me deste testemunho de Otelo, porque, dos acontecimentos descritos, apenas tive conhecimento indirecto.

A 25 de Novembro, pelas 16h, teve início uma reunião do Presidente da República com o Conselho da Revolução. Quando estava, já, no Regimento de Comandos (na Amadora), com os outros camaradas, fui convocado para a reunião em Belém.

Chegado à Presidência da República, fui conduzido à sala em que ocorria a reunião. Assisti, então, à intervenção de Melo Antunes, que retratou o melindre da situação e o perigo evidente, e imediato, de uma guerra civil.

A reunião foi suspensa para o Presidente da República atender um telefonema urgente. Depois de atender o telefonema, o Presidente regressou à reunião, comunicando que falara com Costa Martins, que o informara de que continuava a envidar esforços para resolver o problema dos pára-quedistas.

Melo Antunes retomou a sua intervenção, sublinhando que o tempo das negociações acabara e que se impunha a decisão de responder militarmente. O Presidente da República perguntou, então, se o Conselho da Revolução tinha ideia de como se devia intervir para resolver a situação. Nesta altura, Melo Antunes pediu-me que apresentasse o plano elaborado na previsão de uma situação daquele tipo.

Secundei-o, reiterando a necessidade urgente de responder à sublevação, pois, como ia demonstrar na apresentação da ordem de operações, as forças sublevadas, militares e civis, tinham a possibilidade real de dispor de superioridade, a que só se poderia corresponder, se necessário, com o empenho da Força Aérea. E acrescentei que o aproximar da noite tornaria esse empenhamento impossível. Descrevi, em pormenor, o plano de operações. O Presidente da República fez algumas perguntas e, obtidas as respectivas respostas, concordou com o plano e autorizou a sua execução.

Na sequência dessa concordância, o General Costa Gomes assinou dois importantes documentos. O primeiro foi a declaração de «estado de sítio» no distrito de Lisboa. O segundo, preparado pelo grupo de militares na Presidência da República, foi a delegação do Comando Operacional no Comandante da Região Militar de Lisboa (Vasco Lourenço) e no Comandante do Grupo Militar (Ramalho Eanes).

Antes do 25 de Novembro, o senhor General não tinha protagonismo político. Como se tornou o chefe operacional nesse dia?

É essa uma pergunta a que só Melo Antunes poderia ter respondido e a que os meus camaradas elementos do ‘Grupo dos Nove’ poderão responder.

Poderei adiantar que fiz o possível para que fosse outro e não eu a coordenar a execução do plano de operações. E, fi-lo, sobretudo, porque muitos dos camaradas que constituíam o estado-maior que respondeu à sublevação tinham maior antiguidade militar do que eu.

Este é, por certo, um dos muitos casos em que se verifica o clássico aforismo: ‘O homem é o homem e a sua circunstância’.

Quando saiu de casa dirigiu-se onde? Com quem se encontrou? Ia armado?

Fui informado, cerca das 7h da manhã de dia 25, da acção desencadeada pelos pára-quedistas, pelo meu camarada José Pimentel.

Dirigi-me para o Estado-Maior-General das Forças Armadas, onde nos reunimos, no local onde eu, Loureiro dos Santos e José Pimentel tínhamos um gabinete de trabalho.

Ia armado com uma pistola, arma devidamente legalizada, que era de minha propriedade.

Foi actualizado o «estado de situação» e decidido executar o Plano de Operações que havia sido preparado.

Tomé Pinto, Aurélio Trindade, Garcia dos Santos, Monteiro Pereira, Gomes da Silva (da Armada) e eu próprio iríamos, de imediato, para o Regimento de Comandos, na Amadora, comandado por Jaime Neves.

Entretanto, Loureiro dos Santos, Rocha Vieira e José Pimentel iriam para a Presidência da República como elementos de ligação com o Presidente.

Acha que Costa Gomes, com as suas proverbiais indecisões, acabou por evitar a guerra civil? Havia possibilidades de esta acontecer? Existiam tropas suficientes dos dois lados?

Acho que acabou por contribuir, decisivamente, para evitar a guerra civil. Contribuído terá, também, Otelo, que se manteve surdo aos apelos dos seus apaniguados para, com as suas forças apoiantes (civis e militares), actuar e enfrentarem-se militarmente.

Em minha opinião, a guerra civil esteve iminente. Creio que, a este propósito, será interessante recordar, uma vez mais, o testemunho de Otelo: «Havia o receio de um confronto entre forças militares. Umas, constituídas pelo bloco das unidades militares do Exército, que, estando empenhadas na revolução socialista, me apoiaram sem reservas juntamente com os ‘páras’ e os fuzileiros; outras, pela esmagadora maioria das unidades do Exército, sobretudo as sedeadas a norte do Tejo e fora de Lisboa, e com as companhias de comandos mobilizados, empenhadas no regresso à ‘pureza inicial do 25 de Abril’. A verificar-se esse confronto, poderiam resultar consequências dramáticas que podiam desembocar em guerra civil».

Por mim, resta-me acrescentar que, também no nosso espírito, esteve sempre presente o imperativo de tudo fazer para evitar uma guerra civil.

Talvez mais do que noutras guerras, a guerra civil deixa, na coesão da Nação, consequências inapagáveis em sucessivas gerações. Pode saber-se como ela começa. Dificilmente se pode prever como acaba.

Assim, tivemos, sempre, bem vincada, no nosso espírito, a preocupação de que a resposta tivesse, apenas, a intensidade mínima para neutralizar a acção adversária.

Como interpreta o papel do PCP? Parece que esteve envolvido na acção dos pára-quedistas, mas no último momento Álvaro Cunhal mandou parar. É esta a sua ideia?

Creio – e sublinho que creio – que Otelo e os seus militares, em diversas unidades do Exército, dos pára-quedistas, dos fuzileiros (repare que digo fuzileiros e não o corpo de fuzileiros), da Armada e forças políticas da Extrema-esquerda, prometeram empenhar-se e vencer. O PCP teria de participar, e fê-lo. Mas, atento à evolução da situação, desvinculou-se da sublevação, para a qual teria sido arrastado, embora contra os seus interesses estratégicos, logo que concluiu que a sublevação se saldaria em insucesso.

Melo Antunes, ao fim do dia 26 de Novembro, fez a célebre declaração contra a tentação de se ilegalizar o PCP. Foi combinada com o grupo ou foi uma iniciativa pessoal? Terá havido contactos entre Melo Antunes e Cunhal?

Por falta de informação suficiente, não poderei responder à questão. Posso, no entanto, acrescentar que concordei com a necessidade, oportunidade e justiça democrática da sua ‘célebre declaração’.

O 25 de Novembro pôs fim ao PREC e devolveu os militares aos quartéis. Esse mérito foi-lhe imputado a si como CEMGFA. Foi muito difícil, encontrou muitas resistências?

Não nego que, como Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, num período difícil, tive responsabilidade na reinstitucionalização democrática das Forças Armadas. Tal como papel importante tiveram o ‘Grupo dos Nove’ (em especial, Melo Antunes, Sousa e Castro, Garcia dos Santos e Rocha Vieira), os comandantes das Regiões Militares (Pezarat Correia, Franco Charais, Pires Veloso e Vasco Lourenço) e Tomé Pinto (enquanto Chefe do Estado-Maior do Comando da Região Militar de Lisboa).

Importante, ainda, foi a acção desenvolvida pelos comandantes das várias unidades e Escolas Militares, bem como pelos comandantes do Exército, da Força Aérea e da Armada.

Importante, também, foram José Pimentel e Loureiro dos Santos, que organizaram a Lei 17/75, de 26 de Dezembro, que redefiniu a relação dos militares com a democracia, e que determina o seguinte: «As FAP [Forças Armadas Portuguesas] (todos os seus organismos, unidades, estabelecimentos militares e componentes individuais) são rigorosamente apartidárias, não se permitindo que no seu seio sejam desenvolvidas actividades politicamente sectárias e que veiculem tácticas e objectivos partidários para o seu interior.

As FAP não estão ao serviço de nenhum partido, mas, sim, ao serviço do povo português.

Assim, os elementos das FAP:

1.º Terão de observar os objectivos da maioria do povo, consignados na sua Constituição;

2.º Não poderão estar ao serviço de nenhum partido político;

3.º Não poderão aproveitar-se da sua arma, posto ou função para obrigar, ou mesmo influenciar, a escolha de uma determinada via política. Essa escolha é feita pelo povo ao serviço do qual as FAP se encontram».

Alguns elementos de extrema-esquerda caricaturam-no, na altura, como um general nazi. Como olhou para isso – com ironia ou com revolta?

Senti mágoa, porque tudo empenhara, em termos pessoais (até o futuro da minha família) e, ainda, porque contribuíra para que muitos camaradas decidissem, com risco, eventualmente, assumir a mesma sorte.

Mas senti mágoa só, olhando a mágoa que não terão sentido, pela falta de consideração, então manifestada, muitos militares que à revolução democrática tudo tinham dado já, e continuaram a dar depois.

Para não pecar por omissão, involuntária, mas injusta, referirei, como símbolos exemplares dessa situação, Melo Antunes e Marques Júnior.

Citações:
CUNHA, Manuel Barão da (Coord.)
25 de Novembro: Reflexões. Lisboa:
Âncora Editora, 2016, pp.55-57
Lei n.º 17/75, de 26 de Dezembro, Base V