Ucrânia. Escalada ou histrionismo?

Biden deu a autorização que Zelensky tanto aguardava. Kiev poderá agora utilizar os mísseis de longo alcance americanos para atacar território russo. Com isto, teme-se a escalada e o Kremlin culpa o Ocidente. Os países nórdicos já se preparam para um eventual Armagedão.

O debate sobre se os Estados Unidos deveriam autorizar a utilização de mísseis de longo alcance por parte da Ucrânia, de modo a conseguir atacar território russo, tem sido uma constante durante o conflito. Por ser uma decisão delicada e cujo impacto deve ser objeto de cálculo minucioso, uma vez que pode escalar o conflito para proporções indesejadas, a administração liderada por Joe Biden tem sido cuidadosa. Mas o impasse chegou ao fim. No domingo, o Presidente americano deu luz verde ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.


A autorização vem num momento de transição, onde o Presidente eleito Donald Trump se prepara para assumir a liderança da Casa Branca no dia 20 de janeiro de 2025, o que levanta questões quanto ao timing. Ainda não é sabido se houve comunicação entre a administração cessante e Trump.


Estamos perante uma mudança fulcral na abordagem de Washington ao conflito e teme-se uma escalada, uma vez que o Presidente russo, Vladimir Putin, ameaçou em diversas ocasiões a utilização de armamento nuclear na eventualidade do Ocidente, em particular da NATO, ser responsável por ataques em solo russo. Dmitry Medvedev, vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, anunciou que pode estar iminente uma III Guerra Mundial. Estas ameaças de Moscovo fizeram soar os alarmes no Norte da Europa, onde países como a Suécia, a Noruega ou a Finlândia, dada a proximidade geográfica com a Rússia, distribuem já panfletos à população de modo a preparar um conflito em larga escala.

Porquê agora?


É uma pergunta cuja resposta não é exata, mas existem várias conclusões que podem ser retiradas deste timing.
É certo que o apoio do Ocidente, e em especial dos Estados Unidos, à Ucrânia tem sido fundamental para a resistência de Kiev. Mas tem sido suficiente? É esta a questão. O historiador escocês com nacionalidade americana, Niall Ferguson, argumentou em dezembro de 2023, numa entrevista ao El País, que os EUA não acreditaram na capacidade de defesa ucraniana e «esperavam que Zelensky fugisse. Toda a gente ficou surpreendida com o sucesso da defesa de Kiev (…). Só então começámos a fornecer-lhes armas. E a partir do momento em que começámos a fornecer-lhes armas, fornecemos apenas as armas suficientes para não perderem, mas nunca as suficientes para ganharem». A falta de autorização a Kiev para atacar bases militares russas responsáveis pelos ataques à Ucrânia, colocou Zelensky numa posição de inferioridade acrescida em relação a um inimigo substancialmente mais forte.


A política externa de Biden falhou no aspeto de dissuadir o eixo Rússia-China-Irão-Coreia do Norte a atacar aliados estratégicos dos Estados Unidos e colocou o Ocidente numa posição complicada. Isto porque uma vez iniciados os conflitos regionais, é difícil manter um equilíbrio que possa abrir portas a uma resolução justa e a uma paz sustentável. E a decisão ter sido tomada neste momento, em que Trump, cuja «paz pela força» parece deixar Zelensky com esperança, se prepara para assumir a liderança da ainda maior potência mundial, levantou suspeitas. Mas pode fazer parte do plano para dar à Ucrânia alguma margem de manobra numas possíveis negociações de paz, ainda que o filho de Trump, Donald Trump Jr., tenha dito que «O Complexo Militar Industrial parece querer certificar-se de que a III Guerra Mundial começa antes de o meu pai ter a oportunidade de criar paz e salvar vidas. Têm de garantir esses triliões de dólares. Que se lixe a vida!!! Imbecis!». Donald Trump não se pronunciou.


Como seria expectável, a Rússia apressou-se em condenar a decisão de Biden e a espalhar o medo de um apocalipse nuclear. Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, disse que os Estados Unidos «colocaram deliberadamente gasolina na fogueira», com Medvedev a ir mais longe ao anunciar a nova doutrina nuclear da Rússia: «Os mísseis da NATO disparados contra o nosso país poderiam ser considerados um ataque do bloco contra a Rússia. A Rússia poderia retaliar com armas de destruição maciça contra Kiev e instalações-chave da NATO, onde quer que estejam localizadas. Isso significa a III Guerra Mundial».


Peter Dickinson, editor do blog UkraineAlert no Eurasia Center, num artigo para o Atlantic Council, escreve que a decisão de Biden não desencadeará um conflito à escala global, pelo contrário. «Apesar do histrionismo de Moscovo, a decisão desta semana dos EUA de autorizar ataques limitados em território russo não é suscetível de transformar o campo de batalha ou de desencadear uma guerra mundial. O alcance dos potenciais ataques é demasiado estreito, enquanto a Rússia já teve tempo mais do que suficiente para deslocar os alvos mais importantes para bem longe do alcance». «O verdadeiro significado da luz verde de Biden reside no que ela nos diz sobre o impacto decrescente das linhas vermelhas de Vladimir Putin».


Esta análise é baseada na avaliação do comportamento de Putin ao longo destes quase três anos de conflito, que foi estabelecendo um conjunto rígido de linhas vermelhas que foram ultrapassadas em diversas ocasiões sem consequências reais. Partindo desta visão, é possível que a decisão de Biden seja benéfica para a Ucrânia na mesa de negociações, mas fica no ar o que poderia ter sido caso a autorização tivesse sido dada mais cedo.
Zelensky foi comedido nas declarações, afirmando que «estas coisas não se anunciam, os mísseis falarão por si».
Outro dos motivos que pode ter levado os Estados Unidos a libertar a utilização de ATACMS (Army Tactical Missile System) neste momento foi a chegada de tropas norte-coreanas para ladear o exército russo na invasão da Ucrânia. O líder norte-coreano, Kim Jong-un, reagiu à autorização americana, ordenando às Forças Armadas que se preparassem para a guerra e que procedessem ao desenvolvimento do arsenal nuclear «sem limites», segundo uma notícia da Reuters.

“Brace for impact”


Contudo, e mesmo parecendo que a escalada nuclear não é um cenário altamente provável, os países nórdicos mais próximos da Rússia já se estão a preparar para o impacto de uma eventual escalada do conflito. Os governos da Finlândia, Noruega e Suécia, os mais recentes países a aderir à NATO, começaram a distribuir panfletos e a endereçar e-mails para os seus cidadãos de modo a garantir que a população está preparada na eventualidade de um Armagedão.


Segundo o jornal britânico Daily Mail, os finlandeses foram relembrados da sua «obrigação de defesa nacional», enquanto que os suecos receberam um guia sobre os métodos para se refugiarem em caso de ataque nuclear. No panfleto sueco pode ler-se, na introdução o seguinte: «Um mundo inseguro exige preparação. A ameaça militar à Suécia aumentou e temos de nos preparar para o pior – um ataque armado». No caso de ataque nuclear, as autoridades suecas indicam que os «abrigos» são «a melhor proteção. Após alguns dias, a radiação diminuiu significativamente».


Também na Noruega e na Dinamarca foram disseminados apelos à acumulação de mantimentos alimentares e médicos, como o os comprimidos de iodo, por exemplo.


A autorização de Biden provocou ondas de choque um pouco por toda a parte, mas em especial na Europa. O que parece ser uma reação dotada de um certo histerismo por parte do Kremlin – uma manobra com a qual o mundo já está familiarizado -, deve ser, de qualquer das formas, levada a sério dado o alto risco que está em jogo.


A resolução do conflito pode assumir várias dimensões, e a política externa da administração Trump, que terá um secretário de Estado pro-Ucrânia, Marco Rubio, será um fator decisivo para a região conseguir chegar a um acordo de paz o mais justo possível.


Resta-nos aguardar pelos desenvolvimentos da pior guerra na Europa desde a II Guerra Mundial.