Os segredos do 25 de novembro

Ao contrário do que as análises simplistas concluíram, o 25 de Novembro não foi um confronto entre a esquerda e a direita, entre os revolucionários e os contra-revolucionários. Foi muito mais complexo do que isso, porque as Forças Armadas estavam muito divididas. E havia as influências das potências, os EUA e a URSS.

Estava em casa e ouvi os tiros. Morava na Travessa do Giestal, não muito longe do quartel da Polícia Militar, na Calçada da Ajuda, onde houve confrontos. Mal sabia eu que de alguns daqueles tiros resultaram mortos. Três soldados. Ao longo do dia, fui acompanhando as notícias pela televisão. A certa altura apareceu no ecrã da RTP o capitão Duran Clemente, um militar revolucionário, pelo que percebi que os estúdios do Lumiar tinham sido ocupados. Mas não muito tempo depois vi-o balbuciar, tergiversar, e de repente a imagem perdeu-se. O ecrã ficou cheio de riscos. Concluí que a RTP tinha sido desocupada. E aí fiquei convencido de que os revolucionários tinham perdido a batalha. À noite, a ideia confirmou-se.


Mas o que acontecera? O que se teria verdadeiramente passado? Nos dias seguintes chegaram informações a conta-gotas, mas era tudo muito confuso. E ainda hoje o 25 de Novembro se discute.

OS MILITARES DIVIDIDOS
O Verão de 1975 fora escaldante. Depois das nacionalizações de 11 de Março, tudo escorregava para a esquerda. O PCP dominava vários ministérios, como o da Educação e o do Trabalho, e também muitos centros de poder, pequenos e grandes: a Intersindical, câmaras municipais, comissões de trabalhadores e de moradores, herdades ocupadas em nome da Reforma Agrária, unidades militares. Tudo junto, era uma força temível. Falava-se à boca cheia da possibilidade de uma Cuba na Europa.
Mas a situação não era linear.


A par do PCP, havia nas forças armadas um setor esquerdista, que o PCP não controlava. E depois havia o COPCON, comandado por um louco, Otelo Saraiva de Carvalho, que tanto podia juntar-se à esquerda como à direita. Detestando o PCP, podia aliar-se com os moderados para o combater; sendo de esquerda, podia juntar-se aos esquerdistas para combater a direita.
Diga-se que esta flutuação de Otelo será decisiva no 25 de Novembro. Primeiro desapareceu, e quando apareceu foi para se submeter a Costa Gomes.


Finalmente, havia um setor militar moderado, a que chamavam Grupo dos Nove, que incluía nove conselheiros da revolução: Melo Antunes, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Franco Charais, Canto e Castro, Costa Neves, Sousa e Castro, Vítor Alves e Vítor Crespo. Estes militares tinham ligações ao PS. E a eles juntar-se-ão muitos outros como Ramalho Eanes, Loureiro dos Santos, Garcia dos Santos, Rocha Vieira, Tomé Pinto…
Nas vésperas do 25 de Novembro, a situação nas Forças Armadas era complexa. Ao contrário das análises simplistas, que falarão de um confronto entre a esquerda e a direita, entre os revolucionários e os contrarrevolucionários, as coisas eram bem mais complicadas. Havia pelo menos quatro grupos com ligações e objetivos diferentes: os esquerdistas (ligados a partidos de extrema-esquerda), os comunistas (ligados ao PCP de Álvaro Cunhal), o COPCON (de Otelo) e os moderados (ligados ao Grupo dos Nove).


Ora, nesse dia, só os esquerdistas é que avançaram. Reagindo talvez a uma ‘provocação’ dos moderados, saíram da sua toca em Tancos, ocuparam bases da Força Aérea e o respetivo Estado-Maior, tomaram a RTP e o aeroporto de Lisboa…


Mas perceberam que estavam sozinhos. Os comunistas ficaram quietos e o COPCON também. E ao contrário do que acontecera no 25 de Abril – em que os sublevados não encontraram resistência, havendo apenas uma frustre tentativa de reação por parte de Cavalaria 7 -, aqui os amotinados compreenderam que uma parte importante do Exército lhes daria luta. Forças do Norte, de Santarém, de Estremoz, avançaram em direção a Lisboa, e os Comandos da Amadora, de Jaime Neves, mostraram que não estavam ali para brincar.


E depois havia a posição do Presidente da República, Costa Gomes. Este, por alcunha o ‘Chico cortiça’, era um D. João VI dos tempos modernos: adaptava-se a tudo. Colava-se aos vencedores – e nessa medida ganhava sempre. Ora, quando se pôs ao lado dos moderados, todos perceberam que eles iam vencer.

O PAPEL DAS POTÊNCIAS


Pergunta-se: mas por que razão o PCP e Otelo não avançaram? Álvaro Cunhal não quis envolver-se no golpe, porque detestava confusões com os esquerdistas. Ele di-lo-á claramente mais tarde. Chamar-lhes-á ‘aventureiros’ e acusá-los-á de dividirem a tropa. Quanto a Otelo, as suas dúvidas paralisaram-no. E os esquerdistas viram-se isolados, frente a frente com os moderados – que dispunham de muito mais forças. A derrota era certa. Os paraquedistas e os que se lhe tinham juntado (a EPAM, o RALIS e a Polícia Militar) renderam-se. Ramalho Eanes, no comando dos moderados, com a preciosa ajuda de Jaime Neves, vencera a guerra.
Esta é a pequena história do golpe.


Mas qual terá sido o papel das potências? Portugal ainda era um grande país, condicionando o que se passava em Angola, em Moçambique, na Guiné. E os Estados Unidos e Moscovo não estavam a dormir. Carlucci, o embaixador dos EUA, tinha boas relações com Mário Soares, que por sua vez tinha relações com os moderados do Grupo dos Nove. E Álvaro Cunhal, muito próximo de Moscovo, funcionava como uma espécie de embaixador da URSS em Lisboa.


Acontece que as duas potências, normalmente colocadas em lados diferentes da barricada, no 25 de Novembro puseram-se do mesmo lado: Carlucci apoiava abertamente os Nove, e Cunhal não quis apoiar os esquerdistas.


E a democracia, tal como a entendemos, pôde vencer.
Tenho dúvidas de que o PCP alguma vez tenha pensado em tomar o poder em Portugal. Numa Europa capitalista, era impensável um Portugal comunista. Assim, as movimentações de Cunhal tiveram sempre mais em conta o que se passava em África, pretendendo condicionar o processo de descolonização, designadamente em Angola. E isso também poderá ajudar a explicar a sua atitude no 25 de Novembro. Não quiseram uma confusão em Portugal, que poderia complicar o processo em curso para a independência de Angola.


Mas Álvaro Cunhal, que eu entrevistei diversas vezes, já cá não está para o explicar. E mesmo que estivesse não o revelaria.