Para o tenente Coimbra e o furriel Pires, in memoriam
O 25 de Abril apanhou-me na floresta do Mayombe, numa grande operação, bastante sangrenta, comandada pelo capitão Falcão, o ‘Zé Sopapo’. Os dez meses seguintes passei-os em Luanda, onde assisti a uma crescente oclocracia de tiros e mortes ao desbarato. Nos últimos dois meses da comissão, fui uma espécie de meio adjunto do capitão Gil, o novo comandante do Agrupamento de Comandos/CIC, um apreciador de uísque que não bebia água porque se podia ‘molhar’. Julgo que me escolheu por ser o único universitário entre os alferes, logo, na ideia dele, ‘um gajo de esquerda’. Acompanhei Gil, por exemplo, a uma reunião no Palácio do Governador, com Rosa Coutinho, Lúcio Lara do MPLA, Lukoki da FNLA e um general da UNITA.
Já em Portugal, na ‘peluda’, apanho com nova oclocracia, desta vez mais de palavreado, gritaria e estupidez em movimento do que de tiros. Entre Março e o Verão Quente, na Póvoa de Varzim, passei o tempo nas ruas e cafés com televisão, assistindo à infeção psíquica por contágio político-social que foi o Processo Revolucionário Em Curso. Com massas de ressentidos, vira-casacas e ingénuos lideradas por revolucionários apatifados, o PREC irritava-me pela burrice (Morte às vacas charolesas por serem ‘burguesas’?!) e mais ainda pela mentira. E lia o Expresso, então um jornal sério, O Diabo, da irritante Vera Lagoa, e O Diário, onde me entretinha a catar mentiras, sem deixar de, na passada, apreciar a escrita épica do diretor Miguel Tavares Rodrigues.
No Verão Quente, contribuí com alguma vigilância e informação para acabar com o descalabro revolucionário. Nesses meses de irracionalidade, mantive-me pelo Norte. Na Póvoa, tive acesas discussões com ‘intelectuais’ marxistas-leninistas, cujo pensamento aprisionado os impedia na verdade de intelectualizarem o que quer que fosse; em Argivai, a minha aldeia, andei uma vez à pancada, ganhando a zaragata, mas á custa de um lanho na cabeça; e, em Barcelos, vi um Cunhal encolhido a fugir de um bombardeamento de ‘produtos agrícolas’.
A morte do PREC dá-se, adequadamente, no mês dos mortos e fiéis defuntos. No 25 de Novembro, planeado por Eanes e executado por Neves, ‘A Ordem de Operações’ era a de uma guerra civil. Sem demasiado aventureirismo analítico, poder-se-á dizer que, na tomada do quartel da Polícia Militar, na Calçada da Ajuda, Jaime Neves evitou a guerra civil. Perante a fúria pela morte de Coimbra e Pires, o chefe dos ‘Comandos’ conseguiu travar os seus homens, ‘gente à guerra usada’ de darem um banho de sangue aos pms. Nessa hora crítica da História – o momento para o qual Jaime Neves nasceu –, o grande comandante mostrou-se de coração quente, cabeça fria e mão aberta. Nos decisivos dias do ‘25 do 11’, a vertiginosa série de ações obrigou Neves a viver ‘quatro dias sem tirar as botas’.
A primeira vez que estive com Jaime Neves não foi no mato africano ou num qualquer quartel ou cabaret, mas na sua casa de Corroios. Quando soube por interpostos camaradas da minha intenção de o biografar, começou por se mostrar desconfiado. Acabou por me receber depois de, entre outros, o Manel Frade e o Zé Alberto Ferreira, ambos do meu curso de comandos, lhe terem garantido que eu era ‘apesar de universitário, de confiança’. Dos encontros em Corroios, entre as 11 da manhã e as 4 da tarde – com um almoço, sempre excelente, feito pela mulher Delfina Coré –, resultou, não uma hagiografia, como pretendiam alguns artolas, mas a biografia de Autor Jaime Neves, Homem de Guerra e Boémio.
Entre conversas sobre operações, política castrense ou a vida marialva com a ‘Brigada da Madrugada’, Neves falou-me dos inimigos esquerdistas, sem exagerar nos podres até por que, como Camões, sabia que ‘é fraqueza entre ovelhas ser leão’, no caso ‘Tigre’, o seu ‘nom de guerre’. Desprezava, por exemplo, Vasco Lourenço como ‘fraco militar’, mas respeitava Carlos Matos Gomes, ‘vermelho, OK, mas grande guerreiro’. E espraiava-se sobre duas paixões: a neta, que o tornava ‘um bocado bolacha’, e o Benfica, repetindo ‘Os gajos da FRELIMO também benfiquistas… Eusébio, o Coluna’….
O Jaime Neves que me confidenciou tanta coisa, era já um Neves velho e doente, mas com uma má saúde de ferro. Fiel ao lema ‘O Comando é aquele que consegue dar um passo depois do último’, o ‘Tigre’ aguentou anos com graves problemas de saúde. No Estado da Índia, em Angola, em Moçambique e em Portugal, teve ‘uma vida nada fácil, mas que me sabia tão bem’. Uma vida de ação, de caça a guerrilheiros e outros, em que não raro ‘toureou’ a morte violenta. E a morte, fatalmente, acabou por andar à caça dentro dele (coração, cabeça, pernas, fígado, AVC, diabetes, rins e mais), encontrando-o a 27 de Janeiro de 2013. Muito diminuído, ainda chegou a ver-se como o vencedor do 25 de Novembro, de boina e camuflado, cheio de força, na capa da primeira edição da sua biografia, e sorriu.
Porto, 19 de Novembro, 2024