“Portugal não tem falta de água, não está é a geri-la como deve ser”

O alerta é dado por vários especialistas do setor e há quem defenda uma discussão sobre a gestão da água, que modelo económico deveremos escolher e quais as políticas públicas a seguir.

“Portugal não tem falta de água, não está é a geri-la como deve ser”. O alerta foi dado durante o congresso nacional da Rega e da Drenagem, em que os especialistas sublinharam que o nosso país dispõe do dobro da quantidade de água per capita face ao resto da Europa. Os participantes referiram ainda a necessidade de reduzir as perdas de água e de a levar para a rega, algo que impõe um esforço de modernização urgente, e no qual devem ser respeitadas as especificidades do território em matéria de construção e gestão de barragens e da água. Um cenário onde adquirem particular importância as barragens de fins múltiplos e onde a questão da reutilização da água e das ETARS terá de ser também equacionada. Sobretudo, porque, com a entrada em vigor da nova diretiva europeia, Portugal nos próximos anos terá de investir entre três e quatro mil milhões de euros para reabilitar as águas residuais urbanas, implicando a construção de mais ETARS e a remoção das mais poluentes.


A discussão sobre a gestão da água não é nova. Trata-se, de acordo com o engenheiro e investigador Rodrigo Proença de Oliveira, de “uma discussão sobre o modelo económico que pretendemos para Portugal e sobre as políticas públicas mais adequadas para contabilizar o desenvolvimento socioeconómico do país às suas disponibilidades de água”, mas também lembra que, quando comparado com outros países europeus ou da bacia mediterrânea, Portugal não é um país pobre em recursos hídricos, apresentando valores de escoamento anual médio per capita superiores, por exemplo, aos de França, Itália, Espanha e Grécia, ou mesmo do Reino Unido.


O autor do ensaio Água em Portugal defende que é “necessário encontrar formas de financiar estas políticas, através de investimento público, mas assegurando o princípio do utilizador-pagador, o que implica a distribuição dos custos de forma razoável e equitativa, conforme os benefícios proporcionados”. Ainda assim, de acordo o mesmo, “tal não significa a liberalização do mercado da água, porque é possível desenhar uma estrutura de preços que tenha em consideração o contributo social e ambiental dos vários setores utilizadores e a sua capacidade de pagar. Mas é importante garantir que o custo do recurso água seja incluído no processo de decisão dos agentes económicos”.

O que o Governo está a fazer Para já, o Governo acenou com a preparação de um plano de ação e intervenção nas barragens portuguesas, com o objetivo de prevenir e mitigar o impacto de fenómenos que as alterações climáticas tornarão mais frequentes, como as secas e as chuvas extremas. Tudo indica que serão construídas três novas barragens em Portugal, no Baixo Vouga, no Mondego e em Alportel.


Também em agosto, o Executivo revelou que tinha dado luz verde à intervenção de aproveitamento do volume morto da Barragem de Odelouca, no Algarve. Trata-se de um investimento no valor de 4,9 milhões de euros, financiado pelo Fundo Ambiental e que será executado pela Águas do Algarve, considerado “crucial para garantir a segurança hídrica da região sul do país, particularmente em períodos de seca”.


Este projeto está alinhado com o Plano de Eficiência Hídrica do Algarve e com as medidas de combate à seca aprovadas pelo Governo, estando prevista a sua conclusão no final do ano, permitindo depois um volume de captação de 15 hectómetros cúbicos. “A seca é uma realidade cada vez mais presente no Algarve e este projeto representa um passo importante para complementar em situações de emergência o abastecimento de água à população e às atividades económicas da região. Com esta intervenção, estamos a aumentar a resiliência hídrica e a contribuir para a sustentabilidade ambiental”, considerou Maria da Graça Carvalho.


Ao mesmo tempo, o Governo está a desenvolver um plano para uma gestão mais eficaz da água, que promete apresentar em janeiro de 2025. Anunciado pelo primeiro-ministro em maio, constituído em julho e operacional em outubro, o grupo de trabalho Água que Une está neste momento a preparar um relatório que será entregue ao Governo até ao final do ano com medidas para “assegurar uma gestão mais eficaz da água no conjunto do território nacional”. A ideia é criar um plano interdisciplinar com intervenções em infraestruturas públicas: construção de barragens e melhorias no maior número possível de barragens já existentes (para evitar descargas descontroladas), mas também privadas, como é o caso das explorações agrícolas.


Mas vamos a números. De acordo com o Plano Nacional da Água, desenvolvido pela APA (Agência Portuguesa do Ambiente), o país dispõe de 56 mil hm3 (hectómetros cúbicos)/ano, com oito mil hm3 /ano de águas superficiais e 48 mil hm3 /ano de águas superficiais, dos quais cerca de 1/3 vindos de Espanha. Entretanto, captam-se 4500 hm3 /ano, dos quais cerca de 1/3 voltam ao meio hídrico, resultando em consumos totais da ordem dos três mil hm3 /ano, 5,3% das disponibilidades, que correspondem, então, a 19 vezes os consumos. No entanto, a longo prazo, as disponibilidades poderão reduzir-se até 30%, para 39 mil hm3 /ano, e os consumos poderão duplicar, para seis mill hm3 /ano, e mesmo assim as disponibilidades serão 6,5 vezes superiores aos usos.

Problema mundial É certo que Portugal não é caso isolado. Segundo os últimos dados da Organização Mundial de Meteorologia (OMM) sobre o estado dos recursos hídricos, em 2023, os rios registaram níveis de seca que não se viam há mais de trinta anos e os glaciares sofreram o pior degelo em cinquenta anos de observação. “Os sinais de alerta multiplicam-se”, salientou Celeste Saulo, secretária-geral da organização da ONU para a Meteorologia OMM, referindo que “estamos a assistir a um agravamento das precipitações extremas, das inundações e das secas. Estamos perante situações cada vez mais difíceis, em que a água ou é demasiado abundante ou demasiado escassa”.


Segundo os mesmos dados, nas últimas cinco décadas, os glaciares sofreram a maior perda de massa jamais registada. E entre setembro de 2022 a agosto de 2023, os glaciares perderam em dois anos consecutivos mais de 600 gigatoneladas de água, a maior perda alguma vez observada. “O degelo e os glaciares ameaçam a segurança hídrica a longo prazo de muitos milhões de pessoas”, afirmou a responsável, referindo que o degelo extremo verificou-se sobretudo na América do Norte e nos Alpes europeus, em particular nos Alpes suíços onde os glaciares sofreram uma perda de cerca de dez por cento do seu volume nos últimos dois anos.