O que é o tempo? Consta que, no seu leito de morte, o grande explorador Henry Morton Stanley terá ouvido os sinos do Big Ben, o famoso relógio de Londres, e comentado: ‘Ah, então é isso, o tempo’. Foram as suas últimas palavras.
Recordei-me desse episódio um destes dias ao revisitar o romance O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. O protagonista, Giovanni Drogo, é um jovem militar um tanto ingénuo, ansioso por dar provas da sua valentia no campo de batalha.
Enviado para a velha e remota Fortaleza Bastiani, que domina um cenário inóspito, Drogo passa ali os seus melhores anos à espera do ataque iminente do inimigo, os temíveis tártaros… Mas essa ofensiva nunca mais chega.
Na altura em que o li, fiquei com a impressão de que O Deserto dos Tártaros era uma espécie de À Espera de Godot avant la lettre.
De facto, o romance de Buzatti propõe uma reflexão sobre o vazio e a ausência – de que o deserto oferece uma metáfora eloquente. Mas trata-se também de um magistral romance sobre o tempo. Vejamo-lo no parágrafo seguinte.
«Quase dois anos depois, Giovanni Drogo dormia, uma noite, no seu quarto da Fortaleza. Vinte e dois meses tinham passado sem trazer nada de novo, e ele ali ficara parado, à espera, como se a vida devesse ter para com ele uma tolerância especial. Contudo, vinte e dois meses são muito tempo e muitas coisas podem acontecer: dá tempo a que se formem novas famílias, nasçam crianças e comecem até a falar, para que surja uma grande casa onde antes só havia ervas, para que uma mulher bonita envelheça e já ninguém a deseje, para que uma doença, mesmo das mais longas, incube (e entretanto o homem continua a viver despreocupado), consuma lentamente o corpo, se retire durante breves aparências de cura para regressar com maior ímpeto sorvendo as últimas esperanças, resta ainda tempo para que o morto seja sepultado e esquecido, para que o filho seja capaz de rir de novo e à noite acompanhe as raparigas pelas alamedas e, leviano, junto ao gradeamento do cemitério.»
No mundo lá fora, a vida vai correndo, com as suas alegrias e tristezas. No interior da velha fortaleza, as estações sucedem-se umas às outras sem que nada aconteça. O tempo consome-se na mesma, mas indiferente, de forma perfeitamente estéril. «O rio do tempo passava sobre a Fortaleza, abria rachas nas paredes, arrastava para baixo poeira e fragmentos de pedra, corroía os degraus e as correntes, mas passava em vão por cima de Drogo; ainda não conseguira agarrá-lo na sua fuga.» É como se o nosso protagonista, por força de uma opção irreflectida na juventude, tivesse perdido o comboio da vida e da felicidade.
«Die Zeit is ein sonderbar ding» – «o tempo é uma coisa estranha», canta Marschallin na ópera cómica O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss. «Quando nos limitamos a viver, não é nada. Mas de repente, não há nada além dele: rodeia-nos por todo o lado, mas também está dentro de nós. Escorre nos nossos rostos, no espelho, escorre nas minhas têmporas […] silenciosamente, como uma ampulheta».
Ao ouvir o Big Ben, Stanley terá conseguido decifrar o grande enigma do tempo. Drogo também o aprendeu à sua própria custa – não graças à música dos sinos, nem ao tiquetaque dos ponteiros do relógio, mas ao vazio do silêncio. E dá-se conta disso demasiado tarde. Não está ainda morto, mas não seria muito diferente se estivesse.
Dino Buzzati e o enigma do tempo
«Die Zeit is ein sonderbar ding» – «o tempo é uma coisa estranha», canta Marschallin na ópera cómica O Cavaleiro da Rosa