A autoestrada da água tem ganho novo destaque no debate público, ainda que não seja uma ideia recente. O nome justifica a ideia. Simplificando, trata-se de criar passagens entre várias zonas do país para abastecer de água as que são mais propícias à seca. Mas Sara Correia, da associação ambientalista Zero, explica melhor. “No fundo, esta ideia da autoestrada da água consiste em captar a água mais a norte, na região do Douro, e progressivamente ir trazendo a água – até de albufeiras já existentes – mais para sul, fazendo-a chegar sucessivamente ao Tejo, depois ao Guadiana e, por último, ao Algarve”, explica a especialista ao i.
Num documento publicado em janeiro deste ano com reflexões e políticas para uma agricultura sustentável e competitiva, a associação SEDES defendia que “de forma incontornável, será necessário estudar uma “autoestrada da água” que permita aproveitar os muitos excedentes que neste momento são lançados no mar sem qualquer utilização em prol da comunidade. Estes excedentes são de uma dimensão incomparavelmente superior às outras formas mencionadas para o aumento da oferta”. Um estudo que, dizia, “não deve ter tabus”.
Quem também defende a ideia é o partido Iniciativa Liberal. No seu programa eleitoral para as últimas legislativas defendia a criação de um mercado nacional da água, ou seja, com um “sistema de transvases nacional, sistema real de preços da água, renovar as redes de distribuição, reutilizar água residuais e viabilizar soluções de dessalinização onde houver procura”. Isto, viabilizando a circulação da água por todo o país, criando as chamadas “autoestradas da água”, que levem água ao Alentejo e Algarve.
Mas há mais. Em 2022 também a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) defendia a construção de novas autoestradas da água de norte para sul e a Federação Nacional de Rega (Fenareg) chegou a propor a construção de mais barragens e o alteamento de outras.
Sara Correia recorda que este não é bem um projeto. “É mais um conjunto de vários projetos que foram sendo pensados ao longo de muitos anos. Isto não é uma ideia nova, já existe há décadas e que a questão das secas e da escassez hídrica que se verifica a sul foi, no fundo, a razão para ir reavivar estas ideias que já são antigas”, frisa.
Neste caso, adianta, “o projeto que está agora e que esteve em consulta pública e que se tem falado ultimamente de captar água do Pomarão, no Guadiana e levá-la diretamente à barragem de Odeleite é já uma pequena parte desse projeto, ou seja, é um dos projetos que depois compõem toda a chamada autoestrada da água”, lembrando que “este é um projeto que se pretendia implementar não de norte para sul mas de sul para norte. E tinha esta primeira fase na região do Algarve”, supostamente “numa lógica de se ir progredindo à medida que fosse sendo necessária mais água”.
Mas é solução?
Sara Correia conta ao i que um dos argumentos para implementar estes projetos “é sempre a conversa de que há excesso de água a norte e água que está a fazer falta a sul”, defendendo que “aqui a questão é saber à partida se há, de facto, excesso de água a norte. No nosso ponto de vista isso não se verifica”. E deu exemplos. “Em 2022 houve uma seca e o norte também sofreu. Não exclusivamente pela questão da seca mas também pela gestão que era feita das barragens para a produção hidroelétrica e vimos que o norte do país também sofreu com essa seca e vimos barragens a níveis muito baixos”, lembrando que a zona de Bragança é muito afetada pelas questões da seca tal como é a região do Alentejo e do Algarve.
Por isso, Sara Correia atira: “A ideia de que há excesso de água, do nosso ponto de vista, não será correta. Depois, porque ao fazer projetos deste género, vamos estar a criar uma pressão adicional, que não existe – nos recursos hídricos a norte”. Pressão essa que, segundo a especialista da Zero, “em situações de seca, efetivamente, que abrange o país todo, pode ser potenciadora de conflitos entre regiões”. Mas que conflitos serão esses? “Numa situação de seca, em que todo o país seja afetado, como é que se vai fazer a gestão de transvases deste género? Como é que se vai decidir que quantidade de água é que vai para sul, que quantidade de água é que fica a norte? O que é prioritário regar a sul? Se é, sei lá, uma produção intensiva de amendoal ou se é mais prioritário regar amendoal tradicional a norte ou outro tipo de culturas mais tradicional? Isto iria ser potenciador de conflitos entre as regiões”, garante Sara Correia.
E depois é preciso ver quem paga estes projetos. “Todas estas obras têm que ser pagas de alguma forma. Seja com fundos públicos, com fundos privados, de que maneira for. E mesmo que seja com fundos privados, quem investe nestas obras pretende ter algum retorno. Esta água teria de ser paga de alguma forma. E uma água que está dependente de todas estas infraestruturas, do custo elevado de energia para bombear – porque ela não vai sempre de forma gravítica, as condutas andarão em altos e baixos e em muitos casos serão necessárias estações elevatórias – tudo isso tem custos e tem que ser pago por alguém”. E as soluções não são muitas. “Ou se reflete no preço da água depois para quem vai utilizá-la – e duvido que depois um setor agrícola que tenha disponível outra água mais barata queira usar aquela ou esteja disposto a pagar por aquela água – ou então vai-se refletir nos impostos de todos nós e vamos todos nós estar a pagar aquela água, para além dos projetos em si que terão de ser financiados de alguma forma”.
Os transvases não são suficientes?
Portugal já tem alguns transvases: um da bacia do Douro para a do Tejo, outro da bacia do Mondego para a do Tejo e outro do Guadiana para a bacia do Sado e Ribeiras da Costa Alentejana. E Sara Correia defende que “não precisamos de mais transvases deste género”. Até porque mesmo os que já existem “têm os seus impactos ambientais associados. Não podemos esquecer que não são perfeitos”, uma vez que “vemos constantemente haver pressão para que haja mais água a sair de Alqueva para ir regar outras áreas, nomeadamente na zona do Sado. E isso também são transvases, também é fruto de transvases. Esses transvases, alguns deles, ainda não estão efetivamente implementados e já estão a criar disputas pela água. Neste caso, no caso de um transvase desta dimensão, obviamente os impactos sociais, ambientais, seriam mais complexos depois de se lidar com eles”.
São necessários mais alquevas?
Aqui a resposta também é negativa. O que temos que fazer é “uma gestão muito criteriosa da água que temos disponível” e “se calhar aqui faz sentido repensarmos o tipo de agricultura que queremos. Se queremos uma agricultura de regime intensivo que promove a produção de alimentos como a azeitona, o abacate, citrinos e outras espécies que não são exclusivamente para consumo interno – muitas delas, a maioria, será para exportação – ou se queremos uma agricultura focada naquilo que é absolutamente essencial e que nos dá alguma segurança não só hídrica mas segurança alimentar e uma agricultura focada no auto aprovisionamento ou seja, na produção daquilo que nós efetivamente precisamos para nos alimentarmos e que, em muitos casos, estamos a importar”, diz-nos Sara Correia.
Na sua opinião, “se calhar a gestão da água tem que ter todos estes fatores em conta e neste momento não estamos a tê-los”, atirando que “há aqui uma gestão de todos estes fatores que tem que ser colocada em prática e que neste momento não temos”. Assim, defende que faria sentido “fazer uma gestão nessa ótica de decidir o que queremos, de nos adaptarmos às disponibilidades hídricas que temos e que vamos ter no futuro e não tanto de andarmos constantemente a arranjar estratagemas, formas, projetos para garantir que vamos ter sempre água porque quanto mais água tivermos, provavelmente mais água vamos querer. É sempre um consumo em função das disponibilidades. Se essas disponibilidades vão sendo garantidas progressivamente à custa de transvases ou de outro tipo de projetos, vai haver aquilo que posso chamar de uma sede insaciável, vamos querer sempre mais. E não podemos, de forma alguma, prosseguir numa lógica desse género”.
Questionada sobre se a dessalinização também pode ser uma solução, a especialista recorda que o que a Zero tem vindo a defender é que a dessalinização, “até mesmo as barragens com algumas dúvidas pelo meio”, não é que não possa ser equacionado mas “este tipo de infraestruturas devem ser consideradas como soluções de fim de linha, sempre. E isso está muito bem vertido, por exemplo, no despacho que saiu quando foi criado este grupo de trabalho Água que Une para a nova estratégia da água. As prioridades de intervenção estão lá muito claras e muito bem definidas”, atira.
Portanto, “as novas infraestruturas, os transvases, até mesmo as dessalinizadoras e tudo isso, estão lá referenciadas, estão é nas últimas alíneas. São sempre soluções de fim de linha e para casos muito específicos”. Antes disso, “a montante de soluções desse género, há muitas outras que têm que ser consideradas e daquilo que tem vindo a público, nós não sabemos, temos grandes dúvidas que elas estejam a ser consideradas. Há este elencar de prioridades que estão nesse despacho, na criação do grupo de trabalho mas as últimas notícias que vieram a público vão no sentido de se irem construir mais barragens. Mas não se fala nada na questão da eficiência hídrica, da redução de perdas”. E, falando em perdas, Sara Correia diz não falar apenas no setor urbano “em que temos cerca de 30% de perdas a nível nacional em média” mas também nos sistemas de rega agrícola.
Sistemas de rega mais avançados
“Porque quando dizemos que a agricultura tem que ser mais eficiente na rega que faz, o setor agrícola diz sempre que são mais eficientes porque, de facto, há muitos agricultores que já aplicam tecnologia mais avançada de rega propriamente dita nos seus terrenos. Agora, não é só esse tipo de eficiência que falamos. É eficiência no transporte da água até ao local onde o agricultor a vai utilizar depois. E aí é que tem falhados os investimentos e é aí que se perde muita da água no setor agrícola. Há muitas outras coisas que têm que ser equacionadas e que, do nosso ponto de vista, têm mais vantagens não só ambientais como económicas, sociais com custos muito mais reduzidos que o investimento neste tipo de infraestruturas”.
E finaliza defendendo que “mesmo que não fossem custos mais reduzidos, as vantagens que depois se tiram desse tipo de investimentos são muito maiores. O investimento neste tipo de infraestruturas deve sempre ficar para segundo plano”.