Há alguns dias, na inauguração de uma residência universitária em Lisboa, o primeiro-ministro Luís Montenegro proferiu, provavelmente, as mais significativas palavras desde que chegou a líder do seu partido. Importantes porque fizeram um regresso à génese do seu partido, e da razão de ser do mesmo na sociedade portuguesa.
A comunicação social ‘agarrou’ a comparação dos preços das residências estudantis aos de uma suite num hotel de 5 estrelas. Claro que essa frase foi chocante, até porque a mesma tem adesão à realidade. Para os mais atentos, porém, o mais relevante foi Montenegro ter falado da necessidade de ‘investimento público’ naquelas residências, de modo a ‘salvaguardar a democracia’.
Toda a política pública deve constituir instrumento dos valores subjacentes a uma força política. Isto é, as ‘contas certas’ não são um fim em si mesmo, como não o é o ‘mercado’, um novo aeroporto ou uma rede ferroviária nacional. Toda a ação política tem como fim último a consagração dos valores de uma força política (e de quem a lidera).
Suspeito que, há 10 anos, o então líder do PSD não proferiria aquelas palavras. Aliás, o serviço que Pedro Passos Coelho fez ao país ‘em quase falência’ não teve uma lógica de comunicação que explicasse aos portugueses as razões do esforço, que não as ditas ‘contas certas’. Ainda que hoje se considere que tudo falha devido a falhas de comunicação, talvez então faltassem os valores sociais-democratas, que Montenegro agora deixou claros.
Temo, porém, que o primeiro-ministro esteja mais só do que o próprio imagina no seu partido. O PSD sempre foi um ‘albergue espanhol’, no sentido que, no seu seio, diversas tendências ou diversos grupos, se digladiavam pelo controlo e, consequentemente, pela orientação política do mesmo. O líder e o poder, ou a sua capacidade de o conquistar e manter, eram o cimento que unia o ‘albergue’.
Até ao final do consulado de Cavaco Silva, foram as linhas sociais-democratas que lideraram o partido, ainda que quase sempre mais conservadoras socialmente do que a maioria dos partidos sociais-democratas europeus.
Depois de 1995, e muito decorrente do facto de Guterres ter imposto no PS uma linha de ‘terceira via’, o PSD foi encostando ao que Luís Filipe Menezes caricaturou, no Congresso do partido daquele ano, como sendo ‘sulista, elitista e liberal’, transmutando a social-democracia reformista de Sá Carneiro e Cavaco Silva.
A maior parte dos quadros políticos atuais do PSD foram formados já neste período, num PSD que progressivamente foi perdendo o ‘DNA social-democrata’ e se iludiu com o neoliberalismo que se opunha à terceira via.
Paralelamente, aconteceu o fenómeno da maior parte das cúpulas partidárias serem ou de Lisboa ou aculturados ao ambiente político de Lisboa, no limite ‘estrangeirados’.
Este quadro que aqui se retrata não é necessariamente de crítica, mas sobretudo de análise. Quando o Presidente da República chama ‘rural’ a Luís Montenegro, tal não é necessariamente referente ‘à lavoura’, mas ao PSD de fora de Lisboa. Veja-se que o dito PSD reformista era liderado por gente de origem exterior à capital: Sá Carneiro era um advogado do Porto com origem em Barcelos, Cavaco Silva um professor do ISEG nascido e criado no Algarve pobre.
De certa forma, Montenegro estará a representar o regresso a essa origem num Portugal profundo, o qual ainda tem noção de que este é um país mais pobre e desigual do que a elite da capital imagina.
Todavia, o regresso às origens é, para Montenegro, solitário. Mesmo os que com ele vêm de fora da ‘bolha de Lisboa’ têm, por defeito de formação ou de vida, ligação a linhas políticas divergentes da sua.
Este pode ser, pois, o ‘canto do cisne’ do PSD original.