Querelas inconsequentes

E as ‘contas certas’? ‘Há mais vida para além do Orçamento’? A questão importante não é reduzir ou não a dívida pública, mas saber qual o ritmo dessa redução.

Em Portugal perdemos imenso tempo debatendo coisas que ou são totalmente artificiais ou que não são o que mais importa. O custo destas querelas inconsequentes vai muito para além da perda de tempo. A acrimónia dificulta a busca de soluções concertadas e contribui para o descrédito de instituições e políticos. Dir-me-ão que é a democracia parlamentar a funcionar. Talvez. Mas isso não invalida o dever de escrutínio e a crítica. Que bom seria se os canais 24/24 não funcionassem como amplificadores da irrelevância pela boca de políticos disfarçados de comentadores e de comentadores que mal disfarçam a sua política.
A mais recente querela foi em torno do 25 de Novembro. Eu bem sei que, como ensina George Orwell, «quem controla o passado, controla o futuro». Mas com que propósito? Não será possível concordar em quatro ou cinco evidências, como por exemplo: 1. O 25 de Abril foi mais importante que o 25 de Novembro; 2. Mas Abril não decidiu a questão do regime (democracia parlamentar liberal, democracia popular, socialismo militar); esta só foi decidida com o 25 de Novembro; 3. O PS foi o grande responsável por essa definição de rumo e o grande vencedor do 25 de Novembro; 4. O PCP perdeu a preponderância que gozava desde o 11 de Março, mas não foi esmagado pois permaneceu no governo e viu a sua ‘Constituição de Abril’ aprovada (e cujo lastro ainda hoje se sente); 5. Por tudo isto o 25 de Novembro não foi o 25 de Abril das direitas, mas é graças a ele que podemos ter governos à direita. Acordados nisto, comemorar ou não é secundário; relembrar não é.
A discussão do OE e os milhares de propostas de alteração são um outro exercício em trivialidades. Qual a importância real de reduzir ou não em 1 ponto o IRC? Obviamente não vai gerar mais nenhum investimento nem tornar o país mais rico (ou mais pobre); a sua importância é apenas simbólica. E o debate sobre o aumento das pensões? Não que os magros aumentos em cima da mesa não sejam justos ou sejam excessivamente custosos. Mas será que se falou, a propósito, da sustentabilidade da segurança social? Ou se fará sentido ter duas votações separadas – na generalidade e, depois, na especialidade – quando a segunda pode desvirtuar a primeira?
Ainda a propósito do OE e dos debates que importam. Será que alcançar os 2% para o Orçamento da defesa apenas em 2029 é suficientemente rápido face aos novos desafios? E são 2% uma meta adequada ou deve ser 3%. E onde iremos cortar para os pagar? Existem planos de contingência para o previsível desvio dos fundos de coesão para as defesa e segurança?
E as ‘contas certas’? ‘Há mais vida para além do Orçamento’? A questão importante não é reduzir ou não a dívida pública, mas saber qual o ritmo dessa redução. Por exemplo, não serão os tão visíveis problemas com INEM uma consequência de anos e anos de deterioração do capital público, muito mais do resultado dos erros de gestão da ministra? É assim que queremos as ‘contas certas’? A UE comprometeu-se a atingir a neutralidade carbónica até 2050; investir pelo menos 2% do PIB por ano na defesa para todos os membros da NATO; aumentar as despesas públicas e privadas com inovação para 3% do PIB; atualizar a sua infraestrutura digital para níveis de última geração; e investir na mitigação e prevenção climática. Tem também objetivos mais amplos, como a preservação do seu modelo social. Face a estes desafios, qual é a nossa estratégia orçamental? Não deveremos, por exemplo, aproveitar o espaço fiscal aberto pelas novas regras orçamentais para um caminho de consolidação mais longo?