Ana Paula Tavares. A carne mais desprotegida

Editado pela Caminho, O Sangue da Buganvília reúne um conjunto de 74 textos escritos nos anos 90 por Ana Paula Tavares (1952), poeta, cronista, ensaísta, professora e historiadora angolana. Textos destinados a passar na RDP África, mas que, agora, se converteram em livro.

O sangue desta buganvília, gota a gota vai deixando um rasto com a forma de mapa, um mapa de África. Com as suas terras misteriosas, as suas gentes, as suas tradições, a sua oralidade, o seu umbundu e kimbumdu, o seu quissange e a sua marimba. É um mapa que oferece ao leitor a chave para destrancar o trilho de um outro mundo. Uma geografia secreta e escarificada, muito complexa, onde Ana Paula Tavares tenta desesperadamente encontrar, entre os despojos da guerra, o fio da inocência perdida e o valor das palavras e das suas origens. Da memória e da sua identidade.
Neste seu mapa “é possível, então, olhar a decadência de cada rua, onde uma espécie de doença degenerativa se instalou e dissolve ruas, casas de cimento e de adobe, praças e jardins.” Mas, O Sangue da Buganvília, pela sua espessura e resistência é uma mais valia para que os lugares da destruição e da miséria causada pela guerra, não sejam varridos pelo esquecimento.
Há nestes textos, na temática referente à língua portuguesa, uma mescla de cor esplendorosa e de luto inconsolável. De decadência e de sobriedade luminosa.
A cada texto, o leitor percorre as relações da autora com a sua língua materna, “a língua materna que vai connosco à escola e aprende a domesticar-se e a fingir”. Percorre a história, as tradições orais, o quizomba, o carnaval angolano, a figueira brava do Pucariço, a árvore manga da Huíla, o Guernica e o poster do Che Guevara pendurados na parede do seu antigo quarto de estudante, a perda do grande amigo Amílcar Cabral, o travo amargo da palavra refugiado. É a África de Ana Paula Tavares, a que ela testemunha e onde vê as “mulheres que trazem inscritas nos olhos as palavras sagradas de todos os rituais do tempo”. Mulheres “que inventam o sábado, num amanhecer de todas as cores, transformando cada sábado num dia único, irrepetível, para ser vivido devagar”, “mulheres árvores, de pernas sulcadas de raízes azuis e ventres inchados de filhos”.
É espantoso como estes textos, que são testemunho de um tempo tão duro, minado de dor e de buracos sem fundo, se modelam como delicadas peças de olaria. A partir dos panos de vestir africanos, do cacimbo espesso, das silhuetas dos embondeiros, dos pães de tinta, dos mitos, das queimadas, a autora constrói um território e um compromisso com a História, com a verdade. Tal como Eduardo Lourenço, ela sente que, no que diz respeito à História, muito está ainda por esclarecer. Para Lourenço, “chegou o tempo de existirmos e nos vermos tal como somos. Ao menos uma vez na nossa existência multissecular aproveitemos a dolorosa lição de uma cegueira que se quis inspiração divina patriótica, para nos compreendermos em termos realistas, inventando uma relação com Portugal na qual nos possamos rever sem ressentimentos fúnebres, nem delírios patológicos. Aceitemo-nos com a carga inteira do nosso passado que de qualquer modo continuará a navegar dentro de nós.”
Ana Paula Tavares não convoca apenas Eduardo Lourenço para a abertura dos seus textos. Escritores e poetas como Herberto Helder, David Mestre, Mia Couto, José Luís Mendonça, Georges Duby, Grabato Dias ou Senghor são também convocados. Mas, além de encontrarmos frases dos escritores acima referidos como epígrafes, encontramos igualmente depoimentos de uma mulher africana, de um contador de estórias angolano, um pensamento de uma atriz alemã de origem polaca, um trecho da Ilíada, versos de Santa Teresa d’Ávila ou um provérbio tibetano.
É mais do que explícito que a autora entende a história das relações entre Portugal e Angola como objeto de “matéria dolorosa”. Em Recensões Críticas podemos ler: “Dizem-me os sábios cabinda que isso é mesmo assim e que a história resulta da hábil conservação de segredos, aqueles que nunca serão revelados, a não ser aos iniciados na linguagem secreta das coisas da alma.”
Também a língua portuguesa, no entendimento da autora, se apoderou de toda a história e geografia angolana. Mas esta língua, segundo a mesma, não pode ser referência primeira de “um património comum”. Porém, Tavares está convencida de que “as pessoas continuam a ter da história uma conceção cristalizada”. E só desvendando o passado se poderá desvendar do próprio país uma nova perspetiva. Só assim poderá haver espaço para uma reestruturação.
São textos que tão depressa nos levam do Kisangani ao Bailundo, como da mulola antiga dos caminhos do gado, numa Angola profunda e desterrada, à Luanda que poderá um dia vir a ser a nova Alexandria do futuro. Uma Angola sem lixo e falta de água. Uma Angola sem injustiça, analfabetismo e violência, e com um tecido social mais elástico e agregador.
A autora persegue utopias, palavras sem molde, orações impressas nas pedras, memórias antigas, velhas fotografias, ilhas perdidas no “mar da humanidade”, lendas (“como a do rio que, como na história da vaca e da rã, um dia virou o Oceano Atlântico”). Tudo faz parte de um torturante exercício de memória e de uma tentativa, não de romantizar o drama, mas antes de devolver o brilho de um país que tem tudo para estar à altura dos sonhos dos angolanos.
De acordo com Michelle Facchin, “na escrita de Ana Paula Tavares há uma reconfiguração das realidades pós-independência, por meio da assunção e destaque dos aspetos culturais inviabilizados no processo de colonização, abrindo “as portas da casa do pai”, para que a “bondade das intenções não obnubile o saber do mundo dos muitos mundos confrontados”.
Ana Paula Tavares podia ter escrito sobre o exotismo do seu país, os meninos no Mokolokolo a lançarem papagaios de mil cores ao encontro do pôr do sol, podia ter-se alongado nas tentadoras águas mornas do Oceano Índico, mas não foi por aí que se ficou. Quando se refere aos diamantes, por exemplo, é para colocar em frente do leitor a imagem terrível de uma plantação destas pedras preciosas, “onde homens como vermes escorregam em meio centímetro de cascalho à procura da luz brilhante de um futuro que já não existe nos seus olhos”. Também podia ter escrito sobre as árvores imponentes, cujas folhas coloridas o vento faz questão de espalhar sobre as ruas de Benguela, mas não. São geralmente paisagens vazias, “mortas de árvores, onde passeiam mulheres magras, de pernas fortes, carregadas de água e crianças”. Ao fundo destas paisagens, vislumbramos cabras que “transformam pedras em comida, com um ar meigo e sobrevivente de animal da cor da fome, capaz de roer tudo, mesmo papel, plástico e a matéria de que são feitos os sonhos”. Teria sido mais fácil escrever sobre o céu ou as florestas encantadas de Angola, mas não o fez. Antes resgatou para estas narrativas dias pouco festivos, contadores de histórias cuja voz era afinada pelo álcool ou pelo óleo de palma, soldados meninos com armas de fogo e pés descalços, “cidades construídas sobre antigas cinzas dos antepassados”, almas de homens e mulheres “devoradas numa cidade que cresceu nas margens do esquecimento”.
O Sangue da Buganvília não podia, em certas passagens, ser mais fervilhante e rumoroso. Textos como O Dia em que ficámos órfãos pela primeira vez, Os tambores ou a língua dos deuses, ou Os doces frutos da árvore do pão, movem-se, como que jogando à cabra cega, no poderoso reino da metáfora e da fantasia, atravessando como uma lança afiada a carne mais desprotegida, que não deixa de ser a memória.