Recordações de Mário Soares

‘Liberdade’ é a palavra que melhor assenta a Mário Soares. Ele foi um campeão da liberdade. Combateu Salazar, combateu Caetano, combateu o PCP, combateu os militares comunistas. E a sua vida também foi sempre uma prática de liberdade na política e nas relações pessoais.

Já escrevi várias vezes sobre Mário Soares, e os leitores desculpar-me-ão se aqui e ali me repetir. O meu pai já o conhecia de Paris, pelo que, para ele, eu não era um ilustre desconhecido. Depois do 25 de Abril conheci-o razoavelmente bem. Vibrei primeiro com a sua luta contra uma possível ditadura comunista e fui a comícios seus nessa época. Depois, já como jornalista e diretor de jornal, entrevistei-o várias vezes quer para o semanário que dirigia quer para a televisão. A nossa relação foi sempre cordial, embora ele percebesse que eu não era seu fã incondicional. Diziam-me que tinha fúrias contra jornalistas que publicavam notícias que não lhe agradavam, mas comigo isso nunca aconteceu.
Almoçámos diversas vezes, juntos ou acompanhados. Soares não gostava de almoçar em S Bento, quando era primeiro-ministro, nem em Belém, depois de se tornar Presidente da República, e ia quase sempre comer ao restaurante. Assim, fomos à Travessa, no Bairro Alto, ao Nobre, na Ajuda, ao Pabe, na rua Duque de Palmela, ao Aviz, na rua Serpa Pinto, à Trattoria, na rua Artilharia Um. Comia bem, com prazer, e bebia um copo de vinho tinto. Via-se que gozava a vida. Era o que se chama um bon vivant. Às vezes fumava um cigarro ou um charuto para celebrar uma boa refeição. Olhando para mim, disse um dia a Balsemão, num jantar do Prémio Pessoa: «O Saraiva não gosta de homens como eu ou você, gosta de caras de pau como o Eanes e o Cavaco».
Tinha alguma razão. Sempre senti mais confiança em políticos austeros.
Fui um dia entrevistá-lo à sua casa do Campo Grande. Recebeu-me o Jorge Lacão, que na época funcionava um pouco como seu ‘oficial às ordens’. A meio da entrevista, que não lhe estava a agradar, interrompeu-me e disparou: «Você só me faz essas perguntas… Se me perguntasse isto, eu respondia-lhe…» – e ficava 5 minutos a falar sozinho. «Se me perguntasse aquilo…» – e repetia-se a cena. Até que tive de lhe dizer: «Pois é, senhor doutor, mas sou eu que estou a fazer a entrevista». Ao que ele, sem se desmanchar, replicou: «Eu sei, Saraiva, mas deixe-me vender o meu peixe».
Nessa entrevista, ocorreu um episódio ao qual outra pessoa poderia não ter atribuído qualquer importância, mas eu retive. A dada altura, pediu cafés à empregada. Ela trouxe-os, mas no calor da conversa ficaram esquecidos. Ele voltou a chamar a empregada e disse-lhe: «Ó Deolinda (nome suposto) traga-nos outros cafés, que estes já estão frios». A mulher ouviu e disse entredentes, mas de modo perfeitamente audível: «Fazer outros cafés? Vou aquecer estes!…». O episódio impressionou-me. Pensei: se Mário Soares não consegue fazer prevalecer a sua autoridade em casa, como pode esperar que o país o respeite?
Assisti a outros episódios, algo caricatos. Certo dia, em almoço no Pabe, estava a comer cerejas enquanto dizia umas picardias sobre Guterres. A certa altura mordeu a língua, e exclamou: «Estava a dizer mal do Guterres e Nosso Senhor castigou-me!». Pôs o guardanapo à boca, que veio completamente tinto de vermelho. Fiquei sem perceber se era das cerejas ou do sangue.
Mas, se não era o tipo de político que me cativava, reconhecia-lhe um grande encanto pessoal, uma enorme capacidade de saber estar em todos os ambientes, grande habilidade política, boas qualidades de orador, seriedade e, sobre tudo isto, um grande amor à liberdade.
‘Liberdade’ é a palavra que melhor assenta a Mário Soares. Ele foi um campeão da liberdade. Combateu a ditadura de Salazar, combateu depois Caetano, combateu o PCP e a sua vocação autocrática, combateu os militares comunistas e afins. E fê-lo com grande coragem, de peito aberto.
E a sua vida também foi sempre uma prática de liberdade – na política e nas relações pessoais. As suas conhecidas infidelidades não eram contra ninguém. Sempre foi um homem de família, que amou a mulher e os filhos. Mas tinha de fazer outras experiências.
A direita criticou-o muito, sobretudo pelo seu papel na descolonização. Mas aí, sinceramente, acho que agiu com pragmatismo. A tropa não estava disposta a continuar a lutar nas colónias, e Portugal não tinha meios para impor os seus pontos de vista – fosse em Angola, em Moçambique ou na Guiné. Conseguiu-se o possível, que não foi muito. E por isso muitos colonos sofreram horrores. Mas não creio que tenham sido vítimas de Mário Soares – foram antes vítimas da História.