Estamos habituados a pensar neles como bastante racionais e detentores de uma frieza invejável, que é necessário possuir quando nos deparamos com as situações mais hediondas. Têm de estar prontos para tudo e, nos momentos de descanso, alienar-se dos problemas com que tiveram de lidar no horário laboral. Não podem deixar que os contaminem ou destruam. Ao mesmo tempo, é necessária uma sensibilidade e empatia para que a profissão seja vivida e praticada da forma mais humana possível.
São cada vez mais os polícias que escrevem e que partilham com o mundo outras paixões além da de estar no terreno a proteger e «a assumir-se como guardiões da verdade e dos direitos», afirma Bruno Pereira, o subintendente e presidente do Sindicato Nacional de de Oficiais de Polícia (SNOP). Em julho deste ano, o Montepio da PSP de Lisboa abriu portas para o I Encontro de Polícias Escritores, um momento cultural que «reflete a importância de olhar para a classe de polícias como escritores e ativos culturais», segundo o presidente da direção do Montepio da PSP de Lisboa, Álvaro Marçal. A iniciativa – que prometeu voltar em novas edições –, foi um sucesso e contou com a participação do comissário Carlos Anes Fernandes com a obra Heróis Imperfeitos (que está a editar o seu terceiro romance); a agente principal Lucília Ribeiro com a Leveza das Palavras; o subintendente Bruno Pereira com o livro Fragmentos da Madrugada; o Dr. Manuel João com Filhos da Nação Rural (que já tem 23 obras publicadas) e, por fim, o chefe Miguel Rodrigues com o trabalho Os Polícias Não Choram.
Polícias, escritores e escultores
Álvaro Marçal conta ao Nascer do SOL que a ideia surgiu no âmbito de dinamizar a vertente cultural do Montepio da Polícia que tem 97 anos. «Temos um grande legado social e histórico. Por esta instituição passaram milhares de pessoas e, portanto, estas instituições estão sempre cheias de história. Mas depois é preciso ter noção de que o Montepio, estando situado dentro da própria Polícia de Segurança Pública, a própria Polícia – como as demais instituições –, tem os recursos humanos altamente qualificados. Pessoas que, além da sua profissão, investem na sua carreira pessoal, académica. Além de polícias são escritores, pintores, escultores, dando um contributo à sociedade importante e que, muitas vezes, é subestimado ou nem chega a ser conhecido», lamenta.
«Às vezes os nossos colegas, estão ao nosso lado, são pessoas com um enorme talento e capacidade e nós nem sabemos», frisa.
De acordo com o responsável, com estes encontros a instituição quer dar relevo, visibilidade e valor a essa dimensão humana dos polícias que além do exercício da sua função, deixam essas obras. «Claro que isso valoriza a própria instituição. O Montepio quis ir ao encontro desses colegas e dar dimensão aos seus trabalhos. Queremos estimular», acrescenta.
Para o II Encontro de Polícias Escritores, Álvaro Marçal adianta que já existem mais polícias interessados em participar. «Aliás, vamos ter também pintores e escultores», revela. «Claro que também acabamos por desmistificar aquela ideia da Polícia apenas virada para o investimento da sua ação. Aquele polícia musculado que só vê ação, rigor. É um mítico. O polícia não é apenas uma pessoa que está ali hirto. É uma pessoa como outra qualquer que tem as suas paixões. É também um sinal de transmissão para dentro. É bom termos conhecimento e estimularmos os nossos colegas», aponta.
Para Bruno Pereira, foi «uma iniciativa muito gira», principalmente para que «outros pudessem ver e sentir que têm exemplos a seguir». «Não nos devemos coibir ou hesitar em fazer as coisas que gostamos. Tenho conhecido várias pessoas que também escrevem. Há um camarada nosso que tem uma posição de bastante relevo na Polícia, que me disse há uns meses que gostava muito de escrever. Tanto o chateei que ele agora até criou um blogue», conta o subintendente. «Isso ajuda imenso a que outros possam fazê-lo. Mesmo que escrevam apenas para si próprios. É um exercício importante», frisa. Segundo o mesmo, a partilha neste convénio foi muito boa. «Havia áreas de escrita muito diferentes: poesia, prosa, romance policial e outro sobre algo mais técnico. Foi uma abordagem eclética muito interessante», garantiu.
«Eu acho que cada um de nós não é apenas uma coisa, não tem apenas uma versão. Não temos várias caras, mas podemos fazer várias coisas. Um polícia pode ser médico, agricultor, ator… Temos tantos exemplos na nossa sociedade civil de pessoas que singraram em vários campos ao mesmo tempo. Um polícia tem exatamente o mesmo direito de seguir os seus sonhos», acredita Bruno Pereira.
Brincar com as palavras
É um apaixonado pela área das ciências… mas, ainda que tenha tido uma infância e uma adolescência viradas para a área das ciências matemáticas, da física e da química, sempre gostou imenso de línguas, história, geografia e literatura. «Foi algo que sempre me acompanhou. Entretanto transformei um bocadinho o meu caminho, tendo enveredado por uma área profissional manifestamente distinta daquilo que foi a minha base de construção inicial: a área do Direito, das Ciência Jurídicas. Isso leva-nos a apurar ainda mais a semântica, o léxico, a literatura, encadeamento de palavras… Sempre gostei muito de brincar com palavras», admite o presidente do SNOP.
Já tinha escrito alguns textos soltos ao longo da vida, mas nunca tinha descoberto o gosto em escrever. «Encontrei na poesia algo que me dá imenso prazer», afirma. «Não deixa de ser curioso, porque partiu de uma emoção negativa».
Em 2021, estava em Espanha a dar formação à Frontex, quando apanhou covid. «Tive de ficar em quarentena num quarto de hotel durante 10 dias. No primeiro dia, estava a deambular no meu computador e encontrei um ficheiro em Word. Não me recordava o que era aquilo… Quando abri encontrei um poema que tinha escrito uns meses antes em inglês – acabou por ser o segundo poema do livro –, quando estava chateado com uma questão profissional. Entretanto disse para mim: ‘Vou estar aqui fechado durante 10 dias, vou ter imenso tempo para preencher, por isso vou desafiar-me e tentar escrever um poema por dia’». E escreveu. Depois disso, foi partilhando com algumas pessoas do seu círculo de amigos e família e «eles gostaram imenso». «Mais do que isso encontrei um amigo que precisava naquela altura. Desde então que nunca mais parei de escrever», garante.
O empurrão da namorada
Quando começou não tinha o propósito de transformar os seus poemas em livro. No entanto, no ano seguinte nasceu Os Fragmentos da Madrugada. «Quando comecei não tinha propósito de publicar ou de dar a conhecer ao mundo a minha escrita. Ainda que eu ache que, quem escreve, se se sentir à vontade para fazê-lo, o deve fazer. Assim as pessoas também podem conhecer e inspirar-se. Nem que seja às pessoas mais próximas. Isso foi outra coisa que aprendi. Mais do que dar qualquer coisa, quando queremos dar, não há nada melhor do que dar algo sobre a forma de palavra: sobre ela, por ela e para ela. Tenho feito isso. Quando quero dar uma prenda, opto, ou tento, escrever sempre qualquer coisa. Os Fragmentos da Madrugada surgem porque a minha namorada e um grande amigo meu, sugeriram que eu enviasse para algumas editoras. Nunca tinha pensado nisso. Eu enviei uma amostra e a obra nasceu», detalha.
A obra nada mais é do que um livro onde Bruno escreve sobre diversas temáticas . «Não há um encadeamento lógico entre elas. Não são monotemáticas… Abordo várias coisas e perceções que tenho que podem surgir até da conversa que estamos a ter agora. Eu vou registando para poder escrever sobre as coisas. Podem surgir de uma conversa de café, a ouvir alguém na televisão, ler um livro, ir à missa. Já me aconteceu, por acaso. Num casamento, recordo-me de estar a ouvir um padre – normalmente as intervenções dos padres são um bocadinho monolíticas, mas aquela foi diferente – e registei qualquer coisa que ele disse porque achei interessante e depois fui escrever sobre ela».
Homem dos sete ofícios
Outra coisa que gosta muito de fazer é aceitar sugestões de temas das pessoas. «Ainda agora estive em Angola, naquela que foi a minha primeira experiência profissional em África, e enquanto lá estive senti a necessidade de escrever sobre o que estava a viver e a sentir».
Segundo o subintendente da PSP, os colegas reagiram bastante bem a esta sua vocação e este não tem problemas nenhuns em expor-se. «A democracia permite-nos isto. Como não sou um bandido, não tenho qualquer problema em sujeitar-me àquilo que pode ser o escrutínio popular e a opinião pública (risos). Ainda por cima associada a alguma notoriedade. Vivo bem com isso. Este ano comecei a olhar de uma forma diferente para a área da comunicação. Gosto muito de comunicar. Isso também me permitiu melhorar as minhas competências comunicacionais».
Bruno Pereira é o rosto da luta sindical das forças da autoridade. Além disso, é comentador regular do TVI – Em Cima da Hora, formador e aluno do curso de Direito. E claro que não é fácil gerir tudo. No entanto, é «desafiante» e o trabalho nunca o fez parar de escrever. Apesar de neste momento não ter os seus textos organizados e já lhes ter perdido a conta, deseja escrever um livro em prosa. «É preciso tempo, porque tem de se ser mais disciplinado. Enquanto um poema podemos escrever em 15 minutos, aqui é mais complexo. E com os poemas é curioso. Às vezes parece que já estão escritos na minha cabeça. Abro o computador e deixo-me ir. Parece que a coisa sai como se já estivesse qualificada na minha mente. A prosa obriga a um guião, orientadores, etc. Mas vou tentar. Não gosto de apenas sonhar. Acho que os sonhos não devem ficar apenas sonhos, temos de dar-lhes corpo», remata.