Tem sido muito notado por especialistas e historiadores que o Japão é um território de duas faces. Trata-se, de facto, de um país de alucinante antiguidade e cioso das suas tradições, mas que agarrou a modernidade e a tecnologia com as duas mãos. Um país de amantes da natureza, mas que substituiu grande parte das suas florestas por cidades de ferro, alcatrão, cimento e cabos elétricos. Um país de cidadãos justificada e intensamente orgulhosos, mas que não regateia prolongadas vénias aos forasteiros. Um país de pessoas contidas e silenciosas, que se soltam em jantares pós-laborais prodigamente regados a saké e cantando desbragadamente nos ruidosos salões de karaoke.
Como explicar as aparentes contradições?
As raízes deste tipo de comportamento podem ser encontradas na história do arquipélago e do seu povo. Em particular, na severidade dos castigos aplicados entre os japoneses, que deixou muitos ocidentais arrepiados. Passo a palavra a Kenneth Henshall, autor de uma História do Japão de que já aqui dei nota na passada semana: «O francês François Carron, que permaneceu muitos anos no Japão, na primeira metade do século XVII, escreveu que “os castigos são assar, queimar, crucificar de duas maneiras, esquartejar com quatro bois e ferver em óleo e água”». Outro visitante citado por Henhsall, Francesco Carletti, um italiano do século XVI, relatava: «Muitos sofriam crucificação ao menor pretexto, como o roubo de um rabanete».
Ao falarmos de punições, torna-se quase inevitável falarmos também de lâminas. A fama das espadas japonesas, as katanas, atravessou fronteiras. Espreitemos o que escreve Henshall a esse propósito: «Numa prática conhecida como tameshigiri (“corte experimental”) os samurais verificavam a eficácia das suas espadas nos cadáveres dos criminosos que eram executados, pois, como nos diz Carletti, “o infeliz corpo é cortado às fatias, sendo ali deixado para pasto dos cães e das aves”». E agora a parte mais impressionante: «Uma boa lâmina podia cortar três cadáveres com um só golpe, sendo de sete o recorde – e o teste não se limitava aos cadáveres», remata o autor.
A proverbial obediência dos japoneses foi, portanto, obtida à custa de muito sangue e castigo.
E o que tem isto a ver com as duas faces do Japão? É simples: todo aquele a quem não agradasse a ideia de ser assado, crucificado, esquartejado, fervido ou cortado às postas, era melhor ter cuidado e mostrar-se o mais inofensivo que conseguisse. Como nota Henshall, «os aldeãos procuravam assegurar-se de que apresentavam uma aparência tranquilizadoramente pacífica e inofensiva aos funcionários do dáimio [o equivalente do senhor feudal], independentemente do estado de turbulência real em que a sua aldeia pudesse estar». Daí, depreende-se, a extrema relutância que ainda hoje os japoneses têm em demonstrar os seus verdadeiros sentimentos em público. Não por acaso, Claude Lévi-Strauss, o grande antropólogo francês, decidiu chamar A Outra Face da Lua ao seu livro de ensaios sobre o país do sol nascente.