Raquel Varela.’Recusou-se a mercantilizar a Igreja’

Raquel Varela em forma de romance dá a conhecer a vida de Padre José Martins Júnior, que, da Ribeira Seca na Madeira, atravessou a história global, do fim do feudalismo em pleno século XX às lutas anticoloniais, da teologia da libertação à resistência antifascista, em que o vocábulo ‘povo’ foi elevado.

Como surgiu a ideia de escrever este romance biográfico?

Nunca tinha feito um romance histórico e esta história é completamente central porque Portugal é um dos países em todo o mundo ocidental, onde a relação entre política e religião e entre Estado e Igreja foi mais densa e é menos criticada, ao contrário da França, onde houve um laicismo radical e ao contrário dos países onde houve a reforma protestante. Em Portugal, a Igreja tornou-se a verdadeira âncora do Estado, a dirigente das mentes e dos corações de uma forma retrógrada, obscurantista e ditatorial. O Padre Martins é de todos os resistentes e rebeldes dentro da Igreja aquele que foi mais longe nas críticas à instituição. Para se ter uma ideia, esteve na guerra colonial como capelão e foi contra a Igreja por se ter tornado o arcabouço propagandístico da guerra. E, por isso, foi posto numa paróquia bastante pobre que é a Ribeira Seca.


A ida para a guerra colonial despertou-o para estas críticas…
Sim, mas antes disso já tinha ficado famoso. É intelectualmente tão desenvolvido que fez o curso e teve uma autorização especial de Roma para ser ordenado por não ter idade. E por causa disso fez o discurso 1.º de Dezembro, na Sé do Funchal, durante a ditadura, contra os que se sentam e se ajoelham em fofas almofadas vermelhas em vez de estarem ao lado do povo pobre. O Governador Civil e o Bispo estavam de joelhos em fofas almofadas vermelhas. É mandado para Porto Santo. No Porto Santo combate a Pide e o povo junta-se a ele. Ele alfabetizou as pessoas. Toda a gente aprendeu música, aboliu a confissão ao considerar que a confissão era uma forma de bufaria e de denúncia e, como não quer saber o segredo das pessoas, substituiu a ideia de pecado por perdão, ou seja, em vez de ser o dia do pecado era a festa do perdão. Nunca cobrou um euro dentro da sua igreja. Recusou-se a mercantilizar a Igreja e quando chega à Ribeira Seca tirou as estátuas de dentro da igreja e substitui-as por instrumentos musicais. Quando chega o 25 de Abril é que se dá um passo completamente excecional e que, para mim, é um caso de estudo mundial: com o povo da Ribeira Seca e de Machico cria uma democracia participativa. E hoje que vivemos a crise da democracia representativa, o que foi construído ali foi realmente incrível.

Sendo padre, político e revolucionário não eram papéis de fácil compreensão…


Primeiro, foi eleito independente pela UDP, depois – pelo PS – como deputado regional e, depois, esteve como independente à frente da Câmara Municipal de Machico, no final dos anos 80 e início do anos 90. Já dentro da Igreja aprendeu a organizar. A Igreja é a instituição que mais sabe organizar as pessoas. Tem dois mil anos de organização.

Em 1977 foi afastado…


A Igreja proibiu, mas as pessoas quiseram continuar a ser batizadas e casadas por ele. Quando, em 2022, o Bispo reverteu a decisão e disse que, afinal, continuava a ser padre e que todas as pessoas podiam pedir ao Vaticano para ter o seu casamento e batizado reconhecido não houve uma única pessoa que foi pedir isso ao Vaticano. E uma das grandes batalhas foi em 1985, quando a polícia da Madeira, com a cumplicidade do Governo e do Bispo, manda cercar a igreja e tirar as chaves ao Padre Martins. O povo da Ribeira Seca cerca a polícia durante 18 dias e 18 noites até a polícia desistir. ‘Faz da polícia a casa deles’ era a música que cantavam, até que a polícia desistiu e foi-se embora.

Contou sempre com o apoio da população…


É um homem que desde o início não quis só educar as pessoas, quis transmitir conhecimentos, ajudá-las em tudo o que precisavam, desde as suas necessidades mais básicas às necessidades culturais. Nunca tratou as pessoas com caridade, sempre com solidariedade entre iguais. Por exemplo, a paróquia da Ribeira Seca tinha uma organização democrática e eram os paroquianos que decidiam democraticamente como é que a paróquia se organizava. Não era uma hierarquia, era uma relação entre iguais. Por outro lado, tinha uma política genuinamente popular e acho que hoje a esquerda tem muito a aprender com este exemplo porque temos uma direita populista e temos uma esquerda que não gosta do povo. Temos uma esquerda centrada no Príncipe Real e em São Bento e ele é o exemplo de uma esquerda popular. Há muito a aprender com este homem. Ele encarna aquela frase do Zeca Afonso que, aliás, está pintado no mural da Igreja da Ribeira Seca com a música dos vampiros. Zeca dizia que «não queria cantar para as pessoas, queria cantar com as pessoas». E o Padre Martins ensinou as pessoas a exercerem elas próprias a política, em vez de ser aquela coisa paternalista do vota em mim que vou resolver a vossa vida.

Chegou a dizer que preferia ter sido condenado pela Justiça do que ter sido suspenso sem ter sido julgado…


Exato, porque a Igreja utilizou métodos inquisitoriais para o suspender, sem nunca o levar a julgamento. Evidentemente que isso é uma herança da Inquisição em Portugal. E o que vemos hoje? Vemos um almirante candidato com claros traços bonapartistas, uma direita cada vez mais musculada, um Estado cada vez mais musculado e uma esquerda que falha em defender os direitos, liberdades e garantias fundamentais. E vemos hoje um clima de denúncia, de bufaria, sem as pessoas poderem defender-se em tribunal. Acho que o exemplo dele é um exemplo de dignidade, de ética e de combate a esse obscurantismo, que é típico da direita mas que, infelizmente, também atinge a esquerda.

Mas era uma pessoa que não imponha consensos…


Completamente, mas isso é uma coisa maravilhosa. É um homem que nunca fugiu a um combate, como ele diz: ‘Sempre estive habituado a dar e a levar’ e nunca procurou consensos. Aliás, não precisamos de consensos, precisamos é de uma discussão livre e aberta. E toda a gente que está preocupada com a crise da democracia representativa devia ler a história deste homem e perceber como é que é possível viver em cooperação com a democracia participativa. Para mim, essa é a lição fundamental. A lição fundamental não é as propostas para resolver as coisas, é como é que foram resolvidas com a participação de todos.

Chega a esta idade sem arrependimentos…


Diz uma frase lindíssima que até é um capítulo do livro ‘Combati o bom combate’. Não posso dizer como é que o livro termina porque é um romance, mas o que posso dizer é que é um homem que viveu bem a vida, que está bem consigo e com o mundo. Não sei se há muita gente que quando chega ao final da vida, ou até a meio dela, possa dizer que está bem com a sua consciência.

E continua a criticar a Igreja…


Diz que a Igreja é uma hierarquia de homens vestidos e saias e cita o Papa dizendo que são os corvos do Vaticano. Ele acha que a Igreja – e concordo inteiramente com isso – é uma fonte de retrocesso para o país. E é muito interessante perceber que nem o PS nem o PCP quiseram combater a Igreja como combateu a UDP com ele e com o padre Max que foi assassinado pela extrema-direita. Aliás, o Padre Martins foi alvo de um atentado à bomba, pela extrema-direita bombista que era muito forte na Madeira, uma organização que se chamava Flama, mas escapou. É impossível não olhar para o que fez e não pensar no papel do indivíduo na história. Quando as pessoas dizem que nada é impossível de mudar, ele é a prova contrária.

Numa altura, em que a Igreja continua a ter um grande peso…


A Igreja é uma força organizada, é um verdadeiro partido político em Portugal. Já era o partido político do fascismo com estrutura sobretudo na ação católica. Aliás, Marcelo Rebelo de Sousa vem dessa área da ação e nós agora temos o Chega profundamente religioso. Também temos o almirante e o CDS muito ligados à Igreja. E depois a Igreja em espaços de hegemonia, de poder e de pressão, como é o caso da Opus Dei. E daí, o Padre Martins falar em bolor da Igreja, da denuncia, da suspeição, da hierarquia, da falta de liberdade de pensamento e do medo. Todas essas características da Igreja contaminam o conjunto da sociedade incluindo, muitas vezes, não só pessoas de direita, mas também pessoas de esquerda progressistas. É um ambiente geral que contamina o espírito da sociedade e isso é algo que aquele homem pequenino, magro, sempre com a sua sanfona e com a sua guitarra combateu desde o início. É um homem que ri, que dá piropos, que brinca com toda a gente. É um homem sem medo das palavras.

Era preciso mais padres com esse perfil?


Na verdade era preciso muito mais políticos e muito mais dirigentes políticos, padres e professores. Precisamos desta gente livre para seres humanos.