A ‘lei Relvas’ pode estar com os dias contados, onze anos depois de ter sido aprovada durante o governo liderado por Pedro Passos Coelho. Na altura, o então ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, levou a cabo uma reforma, incentivada pela troika, que reduziu drasticamente o número de freguesias em Portugal, de cerca de 4.259 para 3.091, eliminando ou fundindo cerca de 1.168 freguesias.
Agora a maioria dos partidos parece estar a favor de um retrocesso a esta medida. A comissão do Poder Local aprovou, esta terça-feira, 124 processos de desagregação, o que significará o renascimento de cerca de 274 freguesias em 2025.
Para o ‘pai’ da reforma de 2013, esta reversão representa «um retrocesso civilizacional».
«O previsível era continuarmos a agregar, não só freguesias, mas também municípios. Somos um país pequeno e sabemos que necessitamos de escala, mas também necessitamos de menos Estado», defende Miguel Relvas. «Já houve duas eleições autárquicas. Há um consenso unânime de que hoje o poder local, ao nível das freguesias, desempenha melhor as suas funções, está mais próximo das pessoas, com mais meios, mais condições e mais escala».
De fora do processo de desagregação ficaram cerca de 66 pedidos por não cumprirem critérios legais. Para serem habilitadas à desagregação, as freguesias têm de cumprir alguns critérios, entre eles, uma regra populacional mínima. A lei exige que cada freguesia a desagregar tem de ter pelo menos 750 eleitores ou 250 eleitores no caso das freguesias dos territórios do interior abrangidos por medidas especiais de coesão territorial.
«O que me choca é pensar que nos grandes municípios do país, como Lisboa e Porto, fica tudo como está. E os pequenos, aqueles que mais necessitam de escala, de dimensão e de meios, são os que estão a seguir esse caminho. É um pouco dizer: quem é pobre quer ser mais pobre. A sensação é que querem criar mais uns cargos políticos», critica Relvas.
O grupo de trabalho analisou 188 pedidos de desagregação de freguesias unidas aquando da Lei Relvas, em 2012/2013. Os 124 processos de desagregação foram aprovados, na comissão, por todos os partidos, com excepção da Iniciativa Liberal (IL), que terá votado contra, e o Chega, que se absteve.
PS: «Lei Relvas desrespeita a população e o poder local»
Ao Nascer do Sol, o Partido Socialista diz que «sempre foi contra a decisão política do PSD e CDS-PP que encetou e aprovou uma reorganização do território, em total desrespeito pela população e pela autonomia do poder local, dos seus órgãos eleitos» e adianta que irá contribuir para a reversão desta medida no início do ano.
Já o ex-ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares de Passos Coelho atira farpas aos dois maiores partidos (PS e PSD) e refere que «as malfeitorias não têm património único» e critica o PSD por ter deixado «o baixo clero parlamentar tomar conta do processo».
«Presumo que até estejam arrependidos. Não ficará na história quem vai criar mais Estado, mais freguesias, mais patamares do poder», remata.
Mas resultado definitivo do processo só se saberá no dia 17 de janeiro, aquando da votação em plenário na Assembleia da República.
Para que as novas freguesias vão a tempo das eleições autárquicas, previstas para setembro ou outubro de 2025, é necessário que o mapa administrativo com as freguesias desagregadas esteja concluído até final de março, ou início de abril.
IL: «Chega é incongruente se não se posicionar contra»
A IL foi o único partido que até agora assumiu ser contra esta «contrareforma». Ao Nascer do SOL, a líder parlamentar da IL, Mariana Leitão, sublinha que «não há qualquer evidência de que que tenha havido algum prejuízo durante o período em que houve o agregamento» e que «não é com mais freguesias que se consegue estar mais perto das pessoas».
«Devíamos estar a tomar medidas para o futuro e não a voltar ao passado com contra-reformas que, no fundo, não trazem mais valia nenhuma para as pessoas», acrescenta a deputada.
Já o PCP discorda e considera que «a extinção das freguesias traduziu-se num maior afastamento das populações do Poder Local Democrático, na diminuição da capacidade de resolução dos problemas e da representatividade dos interesses e aspirações das populações, no aprofundamento das assimetrias, na redução da participação popular e na redução de trabalhadores, na perda de identidade própria, da sua identidade histórica e cultural».
Por outro lado, Mariana Leitão critica aquele que diz ser «um aproveitamento político de alguns partidos que, com esta desagregação, conseguem que sejam criados mais cargos políticos para distribuírem pelas suas clientelas».
Apesar de o Chega ter proposto medidas como a redução em 15% dos “gastos políticos” dos municípios e o corte para metade do número de autarcas ao longo de quatro anos, diminuindo também as freguesias, quando questionado pelo Nascer do Sol, o partido liderado por André Ventura não assumiu qualquer posição oficial sobre a nova desagregação do número de freguesias.
A líder parlamentar da IL acusa o Chega de «incongruência», caso o partido não se posicione contra. «Estou expectante para saber como é que se vão posicionar no fim deste processo, principalmente depois de terem feito grandes anúncios, como ser contra o fim dos cortes de 5% dos políticos, que, na verdade, também afeta os autarcas».
No mesmo sentido, Miguel Relvas admite «estar ansioso para saber a posição do Chega, que disse que era necessário diminuir o número de cargos políticos».
«Já agora vamos ver se é como o feijão frade e tem duas caras. Sabemos que é instável».
Recorde-se que o Chega absteve-se na ratificação dos processos de desagregação na comissão de Poder Local, mas só em janeiro terá de assumir a posição final sobre o tema em plenário, tal como os outros partidos.
Marcelo contra reforma sem vésperas de eleições
Até ao momento, Marcelo Rebelo de Sousa ainda não se pronunciou sobre as ‘mexidas’ nas freguesias, mas no passado o Presidente da República já disse publicamente ser contra alterações em vésperas de eleições locais.
Em 2020, segundo o Expresso, Marcelo alertou que se o Governo avançasse com alterações ao mapa administrativo do país antes de outubro do ano seguinte, seria vetado. «Não se muda a organização administrativa do país em vésperas de autárquicas», disse, na altura, fonte da Presidência.
Em 2015, um ano antes de se tornar Presidente, Marcelo deu ainda um testemunho no livro de Miguel Relvas e Paulo Júlio sobre a reforma da administração local feita no Governo de Passos Coelho, onde afirmou que «as reformas de âmbito nacional devem ser desencadeadas no tempo de maior vitalidade governativa, que, em regra, é nos primeiros meses ou anos».
O Nascer do Sol questionou o Presidente da República sobre a sua posição em relação aos processos de desagregação a decorrer, não tendo obtido resposta até ao fecho da edição.