Adília Lopes (1960-2024),a poetisa que escrevia para se salvar

Adília fez sempre um jogo bastante perigoso, e a notícia da sua morte soou abrupta como a ferida de uma última cesura.

Fez versos para casar, deu espaço a uniões improváveis e serventia ao amor desamparado, defendeu o consórcio amoroso entre o doméstico e o metafísico. Epítetos teve muitos, entre os quais «Marquesa de Rambouillet» (Eduardo Pitta) e «Luiz pacheco de saias», como lhe chamou Eduardo Prado Coelho. Foi uma girândola de eus: Adília Lopes, Maria José, poetisa-fêmea, poeta-macho, freira poetisa barroca…. Mas foi também uma contabilista da sua própria existência; olhou sempre para trás, volvendo o olhar ao caminho andado, contabilizou perdas e danos: «tanto a lamentar»; «a minha vida/ foi um mau sonho». Os bons, varreu-os quase antes de os ter sonhado. Morreu no hospital de S. José, em Lisboa, ao fechar do ano, com adolescentes 64 anos, mal acabara de completar quatro décadas de livros publicados, recolhidas no volume Dobra, cuja última edição, da Assírio & Alvim, acaba de ser lançada, esse misto de «poetiza fêmea» e menina arcaica, espécie de antepassada de si mesma, carregada de séculos e de citações – convocadas, postas em circulação, truncadas, obliquamente recriadas, reencenadas, renovadas. “É tudo / tão novo / para mim // Novo / como um ovo // Novo / como um noivo […]”, registou num poema.

Enamorada da ironia, que sempre foi o seu trunfo maior, por vezes banalmente batido, afeiçoada aos prazeres da gramática da linguagem, trouxe para a cena literária portuguesa, onde chegou com estrondo publicitário, não apenas um itinerário singular, longa e sofridamente anotado, mas também as mazelas de uma sociedade presa ao culto do poder, pelo qual não nutria estima alguma. Odiavam-se, aliás, de entranhas. Considerava que «o dinheiro, o sex-appeal, a inteligência [e] o snobismo são as quatro faces do monstro do sucesso». «Antes andar aos caídos que aos subidos», sintetizou com graça e clareza. À doença social juntou a doença pessoal, uma psicose esquizo-afectiva que a fez abandonar o curso de Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e que nunca calou, fosse em entrevistas, em conferências, nas crónicas que assinou, algumas com o nome «Maria Aurélia Moraes, filóloga», fosse na sua anti-poesia.

Adília Lopes passou ao largo das águas do cherne profundo de Alexandre O’Neil. E aos metafóricos peixes verdes de Eugénio de Andrade preferia os «importantíssimos peixes brancos». Num poema que tem por cenário a cozinha, vemo-los a cozer em panela de esmalte, alheios à cultura letrada: «não são para mim, são para o meu gato». Da cozinha à casa de banho, era um passo breve: «Sou um poeta macho/ escrevo no gabinete/ sou uma poetiza fêmea/ escrevo na retrete» (Mulher a Dias, 2002). Adília, assim sem mais, como se lhe referiam os seus leitores mais constantes e mais entusiastas, deu peso poético a uma bolsa lexical consumada pelo uso comum e a todo um conjunto de objectos e situações rasas. Escreveu uma epopeia do mínimo, não para escapar à medida comum, antes para se salvar.

Foi a mulher a dias dos seus poemas, arrumando as palavras como se arruma uma casa para onde convergissem, no mesmo piso, o homem e o bicho, passando a pano irónico superfícies cultas, espanando grandes autores, como Camões ou Pessoa, desarrumando, como quem brinca, a normalidade, puxando o tapete à tradição literária, sacudindo a quinquilharia, em acúmulo: bibelots, senhoras de loiça, bonecas cujos fatinhos jazem em gavetas, objectos sem préstimo, quebrados, gastos, por vezes transformados em jóias poéticas. Mas também loções e champôs dados de brinde nos hotéis, a ajudar à ilusão das viagens que há muito não fazia.

O amor foi ansiedade vã, desejo insatisfeito, conjectura e desencontro, frio agudo a penetrar no corpo em declínio. O casamento paira sobre a sua obra como o espectro de um fantasma tutelar; nem as noivas de Santo António escapam ao seu olhar sarcástico. Solteirona entre paredes, rodeada de gatos, Adília Lopes não inventou o feminismo da frustração mas deu forma à imagem que dele temos, sem fazer do «ai» a sua divisa, trocada pela auto-ironia: «Foi bom não me ter casado. Não tenho cabeça para outra cabeça». A aprendizagem contínua da solidão acompanhou-a sempre: “Deus não me deu/ um namorado/ deu-me/ o martírio branco/ de não o ter”. Queixas, reservava-as à musa que lhe foi destinada, cruel e perversa: «cortou-me a língua», afiada o suficiente para cortar com a boa moral pública vigente em Portugal.

Afastada da musa, preferia a autora a invocação dos favores de Vidal Sassoon, o famoso homem que revolucionou os penteados: «Cobras em vez de cabelos/ afugentam os meus pretendentes/ quem me dera ter os cabelos lisos/ e usar franja/ como a Sylvie Vartan/ e a Françoise Hardy/ Medusa colchão no toucado/ Raponzel de tranças cortadas/ pela madrasta e pelo amante/ suplico à Dona Lena/ que me decapite/ Judite Dalila Salomé Vidal Sassoon/ me valham». Fácil é perceber que este poema mora longe da célebre receita do protagonismo feminino na História: «acrescente as mulheres e mexa bem».

A poesia de Adília Lopes, que se estreou em edição de autor em 1985 com Um jogo bastante perigoso, sempre suscitou as mais desencontradas reacções: surpresa, desconfiança, entusiasmo, incomodidade, divertimento, irritação, indignação, contestação. Nos extremos da paleta reactiva, houve os que cedo agitaram o turíbulo da canonização, como Osvaldo Silvestre e Américo António Lindeza Diogo, e os que por entre baforadas, ergueram a sobrancelha quase na vertical, fizeram vista grossa, cegos diante de patamares mais fundos de reflexão, enxergando apenas a Adília anedótica, provocadora. O certo é a poetisa (como preferia), ao fim de 20 anos e algumas aparições televisivas (no programa Zapping, da RTP2, ou o Herman Show, na SIC), onde se expunha à curiosidade do público, não sem o desconforto que depois viria a acusar, transformou-se num mito vivo, alimentado a leituras públicas, prefácios e posfácios, ensaios críticos, estudos de fôlego e teses académicas. Entretanto, soma-se a possibilidade de um campo de «Estudos adilianos», que começou a despontar ainda no final dos anos 90. Ao contrário de uma Irene Lisboa, para quem o silêncio crítico foi de chumbo e a posteridade vagarosa, Adília conheceu, em vida, uma acelerada consagração a que desconvinha a etiqueta «poetisa pop» que se lhe haveria de colar com força irónica.

Da importância que os prémios literários tinham para a autora de O Marquês de Chamilly (Kabale und Liebe), o reinventor das «cartas portuguesas», publicado em 1987 pela extinta Hiena, falar-nos-ia suficientemente um poema de Clube da Poetisa Morta (1997), que recorda o único prémio que lhe coube: «Em 72 recebi/ o prémio literário/ dos pensos rápidos Band-Aid/ o prémio foi uma bicicleta/ às vezes penso/ que me deram uma bicicleta/para eu cair/ e ter de comprar pensos/ rápidos/ Band-Aid/ é o que penso dos prémios literários/ em geral».

Adília Lopes estava há muito distanciada dos mecanismos convencionais da afirmação literária, reclusa dos seus infernos interiores. Foi dada algumas vezes como poeticamente morta; ela mesma chegou a anunciar o seu fim mas encarnou bem o mito da Fenix. Talvez renasça a cada leitura para nos conduzir ao fundo do enigma de viver.