Diante da vida como de um decepcionante prato que nos é servido nalgum restaurante, há aqueles que não se dão conta da ironia em que incorrem quando se queixam simultaneamente da confecção ou da qualidade dos ingredientes, e, logo depois de constatarem que a comida não presta, ainda se queixam das doses, por estas serem diminutas. Assim, também não é difícil encontrar aqueles que apenas descrevem a vida como uma terrível moléstia, mas, ao mesmo tempo, passam os dias a contar angustiadamente o tempo que lhes resta como trocos, e arrepiam-se imensamente sempre que se fala na morte. David Lodge não se contava entre o seu número. Não lhe afligia minimamente a ideia de ir-se daqui, sem mais, e nem se via a chegar aos 100 anos. Se alguma coisa o preocupava era a perda de capacidades sensíveis, das ligações metafóricas que era capaz de fazer, a perda da memória, dos recursos que estimulavam as associações e uma intimidade consigo mesmo que passa por troçar da existência. Para tantos desses autores que entendem que aquilo que de si mesmos chega à superfície não passa de um esquisso, muitas vezes nem o mais hábil ou esforçado, a sua própria exuberância é a solidão, e defendem-se das impressões cada vez mais apressadas daqueles de quem vivem cercados através desses relatórios com que a imaginação lança um contorno aos modos de se formar uma consciência.
Se a vida moderna representa o triunfo da mediocridade colectiva, como notou Gustave Le Bon, deveríamos esperar dos cronistas desta época que fossem capazes de provar o seu génio através de uma recomposição satírica das realidades que os seus sentidos alcançam, procurando uma desforra pelo lado cómico dos tantos motivos de amargura e desencanto em que a vida nos faz chafurdar. O humor seria assim uma espécie de expressão lírica da revolta, como sugeriu um dos mais hábeis praticantes do género entre nós, Santos Fernando. Foi nessa veia que Lodge assumiu grande destaque, sendo-lhe atribuído um papel decisivo no esforço de manter viva a chispa do romance britânico de feição cómica, uma tradição que, depois de Evelyn Waugh, Kingsley Amis, P.G. Wodehouse, Tom Sharpe e Ray Bradbury (que Lodge considerava o seu melhor amigo no meio literário e o responsável por o apontar na direcção certa), parecia ter ficado meio desamparada por falta de descendentes. Coube a Lodge elevar os espíritos e deixar claro que a literatura é uma coisa demasiado séria para ser confiada apenas aos sisudos, esses que sendo capazes de levar a prosa a derivas buliçosas e cáusticas da mesma forma perdem o pé, perseguindo alguma pulga mítica até ao rim do aborrecimento, e causando os maiores bocejos nos leitores. O autor que se destacou pela “trilogia universitária”, composta pelos romances A Troca: Uma História de Duas Universidades (1975), O Mundo é Pequeno (1984) e Um Almoço Nunca é de Graça (1988), morreu no primeiro dia do ano novo, a três semanas de completar 90 anos. Chega deste modo ao fim uma curiosa vida dupla enquanto reputado académico e escritor best-seller, ficando para sempre ligado a Rummidge, essa versão ficcionada da Universidade de Birmingham, onde trabalhou entre 1960 e 1987, quando decidiu dedicar-se exclusivamente à escrita.
É nessa grande cidade industrial no centro de Inglaterra, “muito cinzenta, muito suja, e sobretudo muito feia”, uma cidade que não é tão difícil de imaginar como isso, uma vez que se situa no “espaço onde Birmingham se encontra nos mapas do chamado mundo real”, entre académicos revezando-se nos habituais esquemas e vícios, rindo à socapa desses episódios facetos que tão bem descrevia nos seus livros, que Lodge gozará o seu descanso. A notícia da sua morte envergava de forma piedosa os habituais clichés, assinalando como morreu “pacificamente”, “com a família ao seu lado”, mas seria mais interessante assinalar como ele enfiou o garfo na tarte de 2025 apenas o suficiente para confirmar que não valia maçar mais o seu estômago, e nem quis deixar que a conta arredondasse no fim do mês. Quando todos celebravam essa vírgula de oiro no calendário, ele corrigiu-a por um ponto final. Numa época que se viu obrigada a pôr a lira no prego, e em que a nostalgia se combinou com o ranço, só restando ao humor aquela gargalhada tétrica diante do desconchavo das coisas, Lodge não quis prolongar a sua estadia. Tendo-se denunciado como um espírito malicioso, no fundo, o seu humor nascia e pulsava de capturar os elementos de absurdo que dão espessura a um quotidiano entediante. Mas o tédio, hoje, é de outra natureza, mais recriminadora, mais da ordem da indiferença diante de um mundo que parece ter perdido o centro, o eixo e o próprio nexo. Com o cabelo preto curto, sobrancelhas carregadas, olhos vivos, boca fina e casaco de tweed, a sua silhueta tornou-se a própria imagem do romancista britânico, como assinalava o obituário do Le Monde. “Por detrás do seu exterior clássico, escondia-se um especialista em comédia e auto-ironia, capaz de tecer um enredo envolvente e de fazer rir os leitores em torno de temas tão pesados como a vida universitária, a religião católica ou o declínio da indústria”. O editor literário Robbie Millen vincava a forma como Lodge soube explorar a ambição frustrada, as relações falhadas e a desilusão sexual que caracterizam esses desabafos do sangue entre a classe educada, criando a partir daí “uma comédia social soberba”. Por sua vez, Laura Freeman destacou o modo como ele sabia entretecer de forma tão habilidosa os enredos que tornava cativante esse mergulho nos corredores onde rastejam essas figuras meio desenxabidas entre colóquios e conferências, polvilhando tudo com incidentes em que se trocam identidades, medem-se atributos, desenham-se rivalidades… Ou seja, estende-se o tabuleiro para um jogo bastante inconsequente, mas no qual, nem por isso, deixa de ser possível compreender os pequenos dramas e desvarios que alimentam o ritmo das existências mais e menos comuns.
No seu trabalho ensaístico, é possível reconhecer a premeditação que faz dos seus romances fórmulas tão eficazes, sendo Lodge um leitor omnívoro e perspicaz, que se tornara muito competente a identificar padrões e estruturas ocultas na linguagem da ficção. Como ressalta o obituário do The New York Times, o seu estudo crítico “The Modes of Modern Writing” (1977) nasce da observação casual de que os modernistas tendiam para a metáfora, enquanto os anti-modernistas dos anos 30 tendiam para a metonímia, utilizando uma palavra, um nome ou uma expressão como substituto de outra coisa a que está associada. Assim, além de um hábil praticante, Lodge foi um escrupuloso estudante da desta arte, tendo-se empenhado em fornecer uma ampla tipologia da literatura. Em “The Art of Fiction” (1992), uma série de crónicas que escreveu para o The Independent, deteve-se em 50 técnicas de escrita e examinou por que razão funcionavam ou não. No seu “The Year of Henry James” (2006) escalpelizou as dificuldades da biografia ficcional e, provocando embaraço em alguns críticos, relançou a discussão à volta da difícil recepção do seu próprio romance sobre James, “Autor, Autor” (2004). Escaldados depois do raspanete, não surpreende que “Um Homem de Partes”, a ficção biográfica subsequente de Lodge sobre a vida de H.G. Wells, tenha sido recebida com maior aclamação em 2011.
No fundo, Lodge provou que havia uma autoridade crítica por trás do sucesso dos seus romances, e que se estes convidavam os leitores a um festival desabrido em que se zombava com aquele universo endogâmico próprio da academia e dos meios culturais, na sua criação ele não prescindia de um sério labor, tanto para organizar a estrutura como o fundo, fazendo o retrato de personagens sabiamente decalcadas, envolvidas em situações caricatas, mas que, além do elemento cómico, permitiam também compreender um certo desencanto e fragilidade, reflectindo aspectos mais dolorosos e profundos. Se Henry James e Wells foram influências importantes, o The Times nota que foram ainda mais formativas as leituras que Lodge fez de Graham Greene e James Joyce, estando patente na sua ficção, e particularmente em “O Museu Britânico ainda vem Abaixo”, uma série de homenagens ou paródias do estilo destes autores, e de outros como Virginia Woolf e Joseph Conrad. Mas o mesmo obituário assinala como a sua atitude espirituosa lhe vinha de uma generosidade e atenção aos seus contemporâneos, e o seu romance de 2001, “Thinks…”, essas suas homenagens se debruçam no estilo de Martin Amis e Salman Rushdie. Ele que nunca cultivou propriamente um estilo identificável de imediato, manteve-se fiel ao ideal de fluidez, vincando que “os sucos criativos secam se não forem mantidos em circulação”. Deu-se conta de que aquilo que caracteriza a sensação de perda ou falta de foco se prende com o facto de vaguearmos “entre dois mundos, um perdido, o outro incapaz de nascer”. Enquanto isso, e para nos livrarmos das vertigens que isto provoca, é natural que a busca constante de informação se tenha tornado a religião contemporânea. Mas Lodge entendia que isto é um equívoco, e que os factos importam menos que a capacidade de extrair nexos, de organizar um enredo, sendo a ficção um modo de investigação em que cada um se esforça por recuperar o desejo, esse elemento de ligação essencial, antes de este ter sido diluído pelo hábito. Assim, a ficção tem menos a ver com retratar a realidade, e mais com dar-nos folga suficiente para nos examinarmos a nós próprios, sem nos distrairmos ou ficarmos obcecados com os detalhes ou as circunstâncias.