Trabalhar aos 70 anos. “Proibido” no público, mas com portas abertas no privado

O presidente da Associação Stop Idadismo defende que a atual legislação deve ser alterada e questiona as regras: “Que sentido faz um médico ter de sair do serviço público e poder continuar no privado?”. Eduardo Paz Ferreira e Maria João Valente Rosa também têm sido duas vozes críticas.

As regras para trabalhar depois dos 70 são mais apertadas no setor público do que no privado. Mesmo com as ligeiras alterações à lei em 2019 – para incluir uma exceção que permite aos funcionários públicos com mais de 70 anos continuarem a exercer funções “em caso de interesse público excecional” e desde que fundamentado. Se quiser permanecer em funções, o trabalhador terá de pedir autorização para continuar a trabalhar que, depois de validada, tem a duração de seis meses. As autorizações podem ser renovadas sucessivamente até ao limite de cinco anos.

Ao i, o presidente da Associação Stop Idadismo, José Carreira, considera que há discriminação em todas as idades, mas admite que “com as pessoas mais velhas é mais violenta”. E não hesita: “Deve ser dada a possibilidade de as pessoas se reformarem se assim o entenderem e, desta forma, deveria acabar esse limite de idade que é imposto, especialmente na função pública aos 70 anos quando a esperança média de vida em Portugal é uma das mais elevadas do mundo”, defendendo “que deixa de fazer sentido este sistema que foi pensado há muitos anos, que não está ajustado às necessidades, aos gostos e aos interesses das pessoas, em primeiro lugar, e por outro lado, não responde às necessidades dos próprios serviços porque sabemos que está a ser cada vez mais complicado recrutar para algumas áreas e de substituir as pessoas que se estão a reformar”.

E dá como exemplo aquilo a que se assiste com os médicos e com os professores, duas áreas em que é clara a falta de profissionais. No primeiro caso, muitos veem o privado como uma espécie de salvação, já que podem continuar a exercer a sua profissão, independentemente de terem atingidos os 70 anos. “Que sentido é que isso faz? Estamos a abdicar dos nossos melhores, de gente que quer continuar a dar o seu contributo e acabam por passar da porta A para a porta B, dando seu contributo no privado quando estamos a braços com a falta de recursos humanos”, refere. O caso dos professores é outro exemplo gritante. “É claro que é uma profissão que as pessoas estão esgotadas e não sei até que ponto que querem continuar. Mas não faz sentido, por exemplo, no ensino universitário dizer que têm de se ir embora. Isso é uma contradição”.

Outra contradição diz respeito à possibilidade de haver determinados cargos públicos até eletivos com pessoas com mais de 79 anos. “O nosso Presidente da República tem 76 anos e, neste caso, não há problema. Não faz sentido”, salienta.

Exceções Apesar de aplaudir as alterações levadas a cabo à legislando, permitindo que as pessoas se assim o entenderem possam continuar a trabalhar com mais de 70 anos, José Carreira reconhece que são casos excecionais. E dá o exemplo de João Goulão, que até aqui tem estado à frente do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), mas que entretanto, já anunciou a sua saída. “João Goulão tem permanecido no cargo, apesar da idade, porque é considerado um caso de extrema necessidade e de interesse público. É uma exceção à regra”, refere ao nosso jornal, defendendo que para as pessoas desta idade permanecerem no cargo devia deixar de haver uma justificação concreta. “Quero continuar, o serviço entende que sou válido”, deveria ser o suficiente. Além disso, acrescenta, “deveria ser um procedimento automático”. Ao contrário do que acontece hoje. “Para se manter no cargo tudo depende do critério e de quem vai avaliar, em que a excecionalidade e a ideia de interesse público tem de estar sempre presentes”.

O presidente da Associação Stop Idadismo dá como exemplo o que se vive na Alemanha. “Há uma necessidade enorme de recursos humanos em várias áreas e mesmo beneficiando da imigração não estão a conseguir encontrar soluções, daí aceitarem que pessoas mais velhas continuem no cargo. Em Portugal, estamos a aumentar progressivamente a idade da reforma e depois estamos a dizer às pessoas que chegam aos 70 anos não valem nada. O que estamos assistir é a reformas compulsivas. É urgente mudar a forma como pensamos, a forma como sentimos e a forma como agimos em relação ao nosso processo de envelhecimento e ao processo de envelhecimento da sociedade e enquanto isso não acontecer e enquanto não houver uma alteração da mentalidade e da cultura relacionada com a questão do envelhecimento vamos continuar a ter uma legislação idadista que penaliza a pessoa, que se vê obrigada de um dia para o outro a deixar de fazer o que gosta de fazer e, ao mesmo tempo, penaliza questões relacionadas com a sustentabilidade da Segurança Social e uma série de serviços que se veem de um dia para o outro sem recursos humanos”.

Outro exemplo apontado pelo responsável diz respeito ao Reino Unido que lançou uma campanha nacional de combate ao idadismo. Uma ideia que foi lançada pela associação nas últimas eleições legislativas com um manifesto a defender uma campanha semelhante. “Temos um plano nacional para o envelhecimento ativo e saudável que felizmente está a ser implementado, mas se calhar a um ritmo lento, porque este mesmo plano está manco, já que devia ter como pilar o combate ao idadismo e a palavra idadismo aparece uma única vez”. E questiona: “Se queremos alinhar as estratégias internacionais com as nacionais que sentido faz não começarmos pela base? Não podemos continuar a ter um olhar negativo, estereotipado e estigmatizante sobre o nosso envelhecimento”.

Para já, o presidente da entidade promete voltar a falar com os deputados da Assembleia da República para chamar de novo a atenção para esta questão.

Descontentamento Uma situação que tem provocado várias críticas. Uma delas é de Eduardo Paz Ferreira, que foi ‘obrigado’ a dar a sua última aula na Faculdade de Direito no dia 8 de fevereiro de 2023 por ter atingido 70 anos, mantendo, no entanto, o seu escritório de advogados. Nessa altura, em entrevista ao Nascer do SOL, denunciou: “É uma violência total que, independentemente das condições físicas e psíquicas, as pessoas sejam obrigadas a sair do trabalho”. Lembrava que “é o que acontece tipicamente na função pública por força da lei”, mas “mesmo noutras circunstâncias há a tendência de pôr as pessoas de idade e até bastante mais novas do que os 70 anos fora do mercado de trabalho, fora do mercado de intervenção cívica”.

Em relação às consequências não hesita: “Deitá-los fora como se fossem restos indiferentes. Isto tem um efeito terrível sobre as pessoas, sobre a sua saúde, sobre a capacidade e o interesse que encontram em viver. E tem também um efeito terrível sobre a sociedade, porque perde muitas valias no que essas pessoas representam, em termos de conhecimentos, de interesses e experiências. Tudo isso desaparece, sendo substituído por pessoas mais jovens e mais bem preparadas à partida, mas a quem falta toda essa experiência”.

O professor catedrático disse ainda que odeia “o racismo, o sexismo e aquilo a que se chama vulgarmente o idadismo, que é esta tendência para pôr de lado os idosos e considerar que não servem para nada”, acrescentando que, “na melhor das hipóteses, servem para tratar dos netinhos e de coisas assim. Isto é um desrespeito total pelos direitos humanos e é preciso corrigir isso”.

A demógrafa Maria João Valente Rosa é outra das vozes críticas. “Continuamos a achar que aos 65/ 66 anos, a pessoa deve entrar para a gaveta do mais velhos. Mas as pessoas dessa idade nada têm a ver com uma pessoa com a mesma idade em 1960. Hoje, uma pessoa com 72 anos tem uma esperança de vida equivalente a uma pessoa com 65, nos anos 60. Uma pessoa 40/ 41 anos está atualmente a meio da sua vida. Tem tantos anos para viver como aqueles que já viveu. E se for mulher ainda mais. Temos uma idade para estudar, uma para trabalhar e uma para se descansar. Isto não faz qualquer sentido porque a formação é um processo importante que deve ocorrer ao longo da vida. Nas idades centrais trabalha-se e não se tem tempo para mais nada. Pergunto: e se trabalhássemos um bocadinho menos nas idades centrais e prolongássemos mais o tempo de trabalho? Depois a pessoa chega à reforma, por ter uma certa idade, e dizem ‘aproveita’. Mas aproveita o quê? As Nações Unidas estimaram que anualmente esta discriminação custe milhares de milhões de dólares, apontando como exemplo as reformas baseadas em critérios rígidos de idade que privam a sociedade da experiência das pessoas mais velhas”, declarou em entrevista ao i.