Yourcenar, essa grande escritora

Nenhum historiador de arte ortodoxo, nenhum perito, nenhum conservador de museu, seria capaz de escrever linhas com este grau de sensibilidade, de subtileza – e de verdade.

No dia em que uma estátua é acabada, começa, de certo modo, a sua vida». É com esta frase, cujas palavras ficam a dançar-nos na cabeça, que Marguerite Yourcenar inicia ‘O tempo, esse grande escultor’, o texto que empresta o título a um livro de ensaios publicado em França em 1983.
Conhecemo-la como a autora de romances históricos célebres – em especial das Memórias de Adriano e de A obra ao negro –, mas curiosamente talvez nem seja quando fala sobre literatura, mas quando se debruça sobre a arte do passado, que a escrita desta grande mulher de letras atinge a sua maior perfeição.
«Fechou-se a primeira fase em que, pela mão do escultor, ela passou de bloco a forma humana; numa outra fase, ao correr dos séculos, irão alternar-se a adoração, a admiração, o amor, o desprezo ou a indiferença, em graus sucessivos de erosão e desgaste, até chegar, pouco a pouco, ao estado de mineral informe a que o seu escultor a tinha arrancado». Nenhum historiador de arte ortodoxo, nenhum perito, nenhum conservador de museu, com a habitual obsessão por periodizações, questões de atribuição e aspetos técnicos relativamente estéreis, seria capaz de escrever linhas com este grau de sensibilidade, de subtileza – e de verdade. E continua: «Esses objetos duros trabalhados para imitar formas da vida orgânica sofreram, à sua maneira, o equivalente do cansaço, do envelhecimento, da desgraça. Mudaram como o tempo nos muda».
Yourcenar percebeu como ninguém que as marcas deixadas pelo tempo nas obras criadas pelo homem lhes acrescentam uma nova camada de significado e de beleza. Mesmo quando o original começa a apagar-se progressivamente, há algo que se ganha.
«Estátuas expostas ao vento marinho apresentam a brancura e a porosidade de um bloco de sal a esfarelar-se; outras, como os leões de Delos, deixaram de ser efígies de animais para se tornarem fósseis embranquecidos, ossos ao sol à beira-mar». A alturas tantas já não sabemos bem se estamos a ler um ensaio ou poesia em prosa.
Perdoem-me se abuso, mas não resisto a uma última transcrição. Trata-se da descrição de uma escultura naufragada: «A forma e o gesto que lhes impusera o escultor não foram mais do que um breve episódio entre a sua incalculável duração como rocha que eram no seio da montanha e a sua longa existência jazendo no fundo das águas».
Não é só nas considerações sobre a vida de uma estátua que Yourcenar consegue comover-nos. O mesmo se passa com algumas passagens sobre a festa do Natal, os relevos dos mitos eróticos indianos, a arquitetura da mesquita de Córdova ou o realismo dos bodegones da pintura sevilhana.
Pela sua pluralidade, O tempo, esse grande escultor é um livro para todas as ocasiões. Pela sua qualidade, foi uma forma de fechar um ano de leituras com chave de ouro.