Nos seus melhores momentos, a obra ficcional de David Lodge chega a convencer-nos de que toda ela consiste num formidável livro de reclamações, tendo abdicado do tom implicativo a favor de algo mais compensador. No lugar da denuncia vinha a galhofa, cultivando as suas frustrações mas reclamando-as antes como material para se divertir a si mesmo e ao leitor. Em tantas das suas páginas o decalque oferece-nos cenas de tal modo plausíveis que somos levados a supor que ele construiu um universo literário a partir de empreendimentos descontraídos, limitando-se a transpor a realidade, cosendo o tipo de impressões e farpas que, se no dia-a-dia nos assaltam, para não abrirmos inúmeras frentes de guerra em todos os contextos, acabamos por gerir algum pacto de não-agressão. No caso dele, um sorriso poderia ser apenas um adiamento do ajuste de contas para uma data posterior. Fazendo pleno uso dos seus dotes enquanto observador do tipo de espetáculo gratuito que nos fornecem os círculos intelectuais, Lodge exemplifica admiravelmente como basta uma ligeira inflexão, uma tonalidade levemente paródica para que, aquilo que podia ser maçador e até deprimente, se torne um divertimento. O humor seria assim um modo de operar uma subtil vingança, uma recomposição satírica a partir dessas coisas que, de outro modo, poderiam ser motivo de irritação constante.
Humor, a sua arma de eleição
A partir do momento em que a realidade quotidiana se constitui cada vez mais como uma farsa, a solução passaria assim por gerir os termos do conflito, de forma a que o espírito possa dominar a sua representação. Sempre foi esta a estratégia dos grandes romancistas, mas Lodge especializou-se na exploração dessa vertente cómico-irónica a partir dos ambientes académicos ou literários, acabando por assumir uma posição de destaque enquanto herdeiro de uma tradição de autores britânicos que fizeram do humor a sua arma de eleição. Evelyn Waugh, Kingsley Amis, P.G. Wodehouse, Tom Sharpe ou Ray Bradbury (que Lodge considerava o seu melhor amigo no meio literário e o responsável por o apontar na direção certa) são alguns dos nomes que foram elevando a fasquia. E coube a Lodge vir lembrar uma vez mais que a literatura é uma coisa demasiado séria para ser confiada apenas aos sisudos, esses que, sendo capazes de levar a prosa a derivas buliçosas e cáusticas, da mesma forma muitas vezes perdem o pé e só conseguem produzir no leitor aquela reverência que o faz esconder o bocejo, como acontece amiúde a quem lê os clássicos da mesma forma que durante séculos tanta gente se sentia obrigada a ir à missa.
O autor que se destacou pela “trilogia universitária”, composta pelos romances A Troca: Uma História de Duas Universidades (1975), O Mundo é Pequeno (1984) e Um Almoço Nunca é de Graça (1988), morreu no primeiro dia do ano novo, a três semanas de completar 90 anos. Chega deste modo ao fim uma curiosa vida dupla enquanto reputado académico e escritor best-seller, ficando para sempre ligado a Rummidge, essa versão ficcionada da Universidade de Birmingham, onde trabalhou entre 1960 e 1987, quando decidiu dedicar-se exclusivamente à escrita.
É nessa grande cidade industrial no centro de Inglaterra, «muito cinzenta, muito suja, e sobretudo muito feia», uma cidade que não é tão difícil de imaginar como isso, uma vez que se situa no «espaço onde Birmingham se encontra nos mapas do chamado mundo real», entre académicos revezando-se nos habituais esquemas e vícios, rindo à socapa desses episódios facetos que tão bem descrevia nos seus livros, que Lodge gozará o seu descanso.
‘Especialista em auto-ironia’
Com o cabelo preto curto, sobrancelhas carregadas, olhos vivos, boca fina e casaco de tweed, a sua silhueta tornou-se a própria imagem do romancista britânico, como assinalava o obituário do Le Monde. «Por detrás do seu exterior clássico, escondia-se um especialista em comédia e auto-ironia, capaz de tecer um enredo envolvente e de fazer rir os leitores em torno de temas tão pesados como a vida universitária, a religião católica ou o declínio da indústria». O editor literário Robbie Millen vincava a forma como Lodge soube explorar a ambição frustrada, as relações falhadas e a desilusão sexual que caracterizam o bafio a que se acomodou a classe educada, criando a partir daí «uma comédia social soberba». Por sua vez, Laura Freeman destacou o modo como ele sabia entretecer de forma tão habilidosa enredos que tornavam cativante esse mergulho nos corredores onde rastejam figuras meio desenxabidas entre colóquios e conferências, polvilhando tudo com incidentes em que se trocam identidades, medem-se atributos, desenham-se rivalidades… Ou seja, estende-se o tabuleiro para um jogo bastante inconsequente, mas no qual, nem por isso, deixa de ser possível compreender os pequenos dramas e desvarios que alimentam o ritmo das existências mais e menos comuns.
Veja-se como ele caracteriza em termos gerais essa ficção nuclear dos colóquios ou congressos que permitem que académicos e autores passem a vida em trânsito, convencendo-se assim de que participam de algum modo de uma dinâmica aventurosa. «O congresso dos nossos dias assemelha-se à peregrinação da cristandade medieval, pois permite que os seus participantes se entreguem a todos os prazeres e divertimentos da viagem enquanto, aparentemente, se mostram embrenhados numa austera forma de autovalorização. Para que não restem dúvidas, existem alguns exercícios de penitência que deverão ser realizados – a ocasional apresentação de uma palestra e, certamente, assistir às palestras de outros participantes –, mas, com este pretexto, viaja-se para locais novos e interessantes, conhecem-se pessoas novas e interessantes, e estabelecem-se com elas novas e interessantes relações; trocam-se mexericos e confidências (visto que as nossas já velhas histórias são novas para elas e vice-versa); come-se, bebe-se e passam-se agradáveis serões na companhia delas e, no entanto quando tudo termina, regressa-se a casa com uma exaltada reputação de seriedade intelectual».
Fórmula de sucesso
A par da ficção, no trabalho ensaístico de Lodge é possível reconhecer a premeditação que faz dos seus romances fórmulas tão eficazes, sendo ele um leitor omnívoro e perspicaz, que se tornara muito competente a identificar padrões e estruturas ocultas na linguagem da ficção. Como ressalta o obituário do The New York Times, o seu estudo crítico “The Modes of Modern Writin” (1977) nasce da observação casual de que os modernistas tendiam para a metáfora, enquanto os anti-modernistas dos anos 30 tendiam para a metonímia, utilizando uma palavra, um nome ou uma expressão como substituto de outra coisa a que está associada. Assim, além de um hábil praticante, Lodge foi um escrupuloso estudante desta arte, tendo-se empenhado em fornecer uma ampla tipologia da literatura. Em The Art of Fiction (1992), uma série de crónicas que escreveu para o The Independent, deteve-se em 50 técnicas de escrita e examinou por que razão funcionavam ou não. No seu The Year of Henry James (2006) escalpelizou as dificuldades da biografia ficcional e, provocando embaraço em alguns críticos, relançou a discussão à volta da difícil receção do seu próprio romance sobre James, Autor, Autor (2004). Escaldados depois do raspanete, não surpreende que Um Homem de Partes, a ficção biográfica subsequente de Lodge sobre a vida de H.G. Wells, tenha sido recebida com maior aclamação em 2011.
No fundo, Lodge provou que havia uma autoridade crítica por trás do sucesso dos seus romances, e que se estes convidavam os leitores a um festival desabrido em que se zombava com aquele universo endogâmico próprio da academia e dos meios culturais, na sua criação ele não prescindia de um sério labor, tanto para organizar a estrutura como o fundo, fazendo o retrato de personagens sabiamente decalcadas, envolvidas em situações caricatas, mas que, além do elemento cómico, permitiam também compreender um certo desencanto e fragilidade, refletindo aspetos mais dolorosos e profundos.
Os ‘sucos criativos’ e os dois mundos
Se Henry James e Wells foram influências importantes, o The Times nota que foram ainda mais formativas as leituras que Lodge fez de Graham Greene e James Joyce, estando patente na sua ficção, e particularmente em O Museu Britânico ainda vem Abaixo, uma série de homenagens ou paródias do estilo destes autores, e de outros como Virginia Woolf e Joseph Conrad. Mas o mesmo obituário assinala como a sua atitude espirituosa lhe vinha de uma generosidade e atenção aos seus contemporâneos, e que no seu romance de 2001, Thinks…, as homenagens já se debruçavam no estilo de Martin Amis e Salman Rushdie. Ele que nunca cultivou propriamente um estilo identificável, manteve-se fiel ao ideal de fluidez, vincando que «os sucos criativos secam se não forem mantidos em circulação». Deu-se conta de que aquilo que caracteriza a sensação de perda ou falta de foco se prende com o facto de vaguearmos «entre dois mundos, um perdido, o outro incapaz de nascer». Enquanto isso, e para nos livrarmos das vertigens que isto provoca, é natural que a busca constante de informação se tenha tornado a religião contemporânea. Mas Lodge entendia que isto é um equívoco, e que os factos importam menos que a capacidade de extrair nexos, de organizar um enredo, sendo a ficção um modo de investigação em que cada um se esforça por recuperar o desejo, esse elemento de ligação essencial, antes de este ter sido diluído pelo hábito. Assim, a ficção tem menos a ver com retratar a realidade, e mais com dar-nos folga suficiente para nos examinarmos a nós próprios, sem nos distrairmos ou ficarmos obcecados com os detalhes ou as circunstâncias.